Na bíblia vem escrito VIGIAI e ORAI, e eu aqui acrescento o PRATICAI.
Um dia um amigo gay, assumido e feliz assim, me contou uma história. Há muitos anos me disse que vivia um relacionamento “saudável” (entre aspas porque me questiono muito o que seja isso, uma vez que todos no planeta estamos sempre e incessantemente aprendendo). Até então, ele vinha vivendo alegrias e percalços pelos quais todos nós passamos. Porém, houve um incidente bizarro. Estavam assistindo a uma série, quando seu marido adormeceu, e ele continuou na cama se distraindo com a TV. Passado algum tempo o som da TV começou a incomodar o sono do outro que lhe informou sobre o incomodo, meio sem educação, e se retirou do quarto indo para a sala. E terminou por adormecer lá mesmo no sofá.
Na manhã seguinte, quando ele acordou, foi até onde seu marido dormia, no sofá, e começou a acordá-lo implicando, assoprando no seu rosto, puxando a coberta. Molecagens irritantes para quem está acordando (todos sabem). O marido lhe pediu que parasse e, automática e imediatamente, desferiu-lhe como resposta um sonoríssimo e forte tapa na cara. Ele ficou atônito. Como assim?
O que você acha que aconteceu aí? Embora ele quisesse revidar, houve algo mais sinistro em seu interior do que a revolta, algo que o fez morrer por dentro, algo que acabou com seu dia, algo avassalador. Receber um tapa de quem se ama é muito mais doloroso do que de um estranho, não é? E algo ali abalou sua estrutura, desenterrou seus medos, desenterrou suas sombras. Dois anos depois a relação acabava em brigas e mais brigas.
A agressão física é o de menos no abuso porque você já está sendo espancado por você mesmo, por suas “escolhas”, por admitir, por permitir, por ficar… mas você não pode se culpar por isso.
Muitas vezes você não vai perceber o abuso, nem o abusador vai
Precisamos entender que temos traumas, tanto eu quanto o outro, mas não podemos permitir que uma relação seja ou se torne abusiva por tolerar e compreender os problemas do outro. Agressões que venham tanto de um lado, quanto de outro precisam ser revistas. Às vezes, elas são explícitas, como esse tapa da historinha acima, ou acontecem na forma de xingamentos até, mas às vezes são veladas, numa ironia, num sorrisinho, num deboche, num olhar atravessado. Tudo pode se transformar em agressão se não observamos a nós mesmos em dar respostas ou permitir recebê-las.
Quando falamos de relacionamentos saudáveis ou abusivos, a discussão não pode ser circunscrita a um casal, seja de qual gênero for. Esse tipo de situação pode acontecer também entre pais e filhos, amigos ou parceiros de trabalho, por exemplo. Mesmo que não haja violência física nessas relações, algumas atitudes configuram abusos.
Eu mesma, por exemplo, certa ocasião passei por uma situação assim. O diretor da empresa para a qual trabalhava como secretária − e aqui a intenção não é denunciar ninguém, tanto que não cito nomes −, pedia-me coisas muito além da função. Aproveitava-se de minha boa vontade e conhecimento em Letras, e até livro para sua filha indiquei e comprei. Minha atividade não se restringia às atividades laborais, pelo visto. Mas como eu era muito nova e queria “agradar” o chefe, me dispunha a ajudá-lo até mesmo com medicação para o fígado quando ele apresentava uma enxaqueca na segunda-feira. Se eu tinha alguma “coisa” com ou por ele? Nem paixão. Nunca teria. Ele era insuportável. E eu era trouxa mesmo! Talvez por isso me chamasse de “garota”, como a todas as outras que trabalharam para ele. Sei disso porque uma delas já era ex-secretária e se encontrava dentro da firma ainda, porém em outro setor. Quando ela me passou todas as informações do serviço com um enorme sorriso no rosto, eu deveria ter desconfiado. Ele era um abusador contumaz.
Ingenuidades à parte, você acha que houve reconhecimento dele para comigo? Claro, que não! Quando adoeci de estresse, depois de 6 meses, por maus-tratos, falta de educação, ocupação de meu horário de almoço com serviços e favores, e tirei uma licença de 15 dias, a primeira coisa que ele pensou em fazer foi pedir que o RH me telefonasse, não para perguntar como eu estava, mas para me dizer que não precisaria mais retornar. Daí, e só então, foi que percebi um alívio enorme pela libertação que a demissão me propiciava. Jurei a mim mesma que nunca mais algo assim aconteceria de novo. Aquilo foi bem abusivo, mas só o reconheci muito tempo depois.
Precisamos nos comprometer e cuidar uns dos outros
Os abusos nem sempre são claros e muitas vezes vêm mascarados por um “eu te amo” ou “você é fantástico” ou tolices do gênero. Não se deixe enganar, portanto. Olhe para si mesmx e identifique o seu valor sem pensar em agradar alguém. Ninguém vai amá-lx a mais do que você mesmx, se você só ceder. Colocar seus limites não é egoísmo, é preservação.
Então, não se esqueça de VIGIAR e ORAR, mas também de praticar o afastamento de pessoas que não sabem lidar com você (obviamente não sendo você esta pessoa), praticar o reconhecimento de seu valor, pois você não merece ser abusadx por mais que te digam que sim e você “pense” (inconscientemente) merecer. Manter um relacionamento saudável não é simples. Ambos precisam se comprometer com a relação e tentar verdadeiramente, cuidando um do outro.
Se você não consegue se cuidar, colocar seus limites, sair sozinhx desse círculo vicioso, procure ajuda. Você precisa se preservar para ter uma vida mais calma e leve. Se você quer entender o limite entre o abuso e o que você consegue lidar, pode me procurar.
Vigiar e orar podem ser bons remédios, mas praticar uma relação saudável com você, sua autoestima e seus amor-próprio é o melhor caminho para se livrar de abusos.
Se você sentiu que este texto te ajudou de alguma forma ou pode ajudar alguém, envie o link desse site para outra pessoa. Ela pode estar precisando neste momento.
Venha me visitar também no Instagram. Você é bem-vindo, bem-vinda, bem-vindx!
*Janice Mansur é escritora, poeta, professora, revisora de tradução,
Psicoterapeuta e Psicanalista (atendendo online) e
criadora de conteúdo no Instagram: @janice_mansur
e no canal Better and Happier https://www.youtube.com/@betterhappier7501
Contemplada no Tof of Mind Awards Internacional UK 2022,
na categoria Escritora Destaque do ano.
Foto capa: Imagem de Kenneth Garcia por Pixabay
Fonte das imagens: pixabay