A variação linguística brasileira é uma característica marcante e que reflete a diversidade geográfica, cultural e social do nosso país. Na televisão, essa diversidade é frequentemente retratada em novelas, que desempenham um papel importante na construção de narrativas regionais e na disseminação de diferentes formas de falar. A recente “Mar do Sertão” (2022/2023) e a sua continuação direta “No Rancho Fundo”, que estreou em 15 de abril de 2024 e segue no ar até 01/11/2024, quando exibirá seu último capítulo, ambientada no sertão nordestino, oferecem uma oportunidade para explorar a variação linguística, especialmente o léxico sertanejo.
O sertão nordestino é uma região historicamente marcada por isolamento geográfico e socioeconômico, o que contribuiu para a formação de um léxico próprio, rico em expressões e termos únicos. O vocabulário sertanejo é construído por regionalismos, expressões idiomáticas, arcaísmos e palavras derivadas do tupi e do português arcaico. Além disso, o modo de falar dos sertanejos revela características fonéticas, sintáticas e morfológicas que divergem da norma padrão.
Na novela “No Rancho Fundo”, essa diversidade linguística é evidenciada em frases como:
– “Parumês ou paruano” (indefinição temporal)
– “Quando o sol baixar” (referência ao ritmo de vida ajustado ao clima e à natureza)
– “Daqui um pedaço” (uso de “pedaço” como medida de tempo indefinido)
Esses exemplos não só demonstram um vocabulário único, mas também refletem a relação dos sertanejos com o tempo e o espaço, adaptada à realidade rural e distante dos centros urbanos.
Léxico Regional
O vocabulário usado pelos personagens de “No Rancho Fundo” é uma parte essencial da construção de sua identidade cultural e social. Palavras como “garimpo”, “farra”, “pedra turmalina” e “Lapão da Beirada” destacam aspectos do cotidiano local e da economia da região, mesmo se considerarmos que a novela é uma fábula sertaneja. Essas expressões revelam não apenas os hábitos de vida no sertão, mas também o modo de falar que reflete valores tradicionais, como a honra e a simplicidade, em contraste com a vida urbana representada por Lapão da Beirada.
Expressões Idiomáticas
As expressões idiomáticas sertanejas são outro aspecto linguístico relevante, como:
– “Que horas vai abrir a Gazeta? — Daqui um pedaço!”
Nesse exemplo, “um pedaço” é uma medida de tempo subjetiva, algo comum em regiões onde a vida rural não segue um ritmo de horários estritos.
– “Quando vão assumir a prefeitura de novo? — Parumês ou paruano!”
Essa expressão não apenas demonstra a flexibilidade temporal comum ao sertanejo, mas também pode ser interpretada como uma crítica à instabilidade política, especialmente em regiões afastadas dos grandes centros.
Estrutura Sintática e Fonética
Além do léxico, a sintaxe e a fonética presentes no modo de falar sertanejo são elementos que distanciam essa fala da norma culta. Construções como a omissão de preposições ou o uso frequente de frases curtas e diretas são características que refletem uma oralidade própria:
– “Quinota vem pra cidade” — Supressão de artigos e preposições comuns no português coloquial falado no sertão.
– “Vai ter farra quando o sol baixar” — O uso do tempo como referência ao ciclo natural também demonstra a influência do meio ambiente na linguagem sertaneja.
De um modo geral, a televisão, especialmente as novelas, têm uma função central na representação das diversidades regionais brasileiras. Ao levar à tela variações linguísticas como o léxico sertanejo, a TV contribui para a valorização cultural dessas regiões, ao mesmo tempo em que pode ajudar a combater estereótipos e preconceitos linguísticos.
Por outro lado, a presença de dialetos e sotaques regionais na televisão é, muitas vezes, diluída para garantir que o público de outras regiões do Brasil compreenda os diálogos. Mesmo assim, a inclusão de expressões e palavras locais em “No Rancho Fundo” abre espaço para uma maior aceitação da diversidade linguística no entretenimento de massa, além de oferecer uma plataforma para que espectadores de diferentes partes do país possam entrar em contato com outras formas de falar.
A análise do léxico sertanejo em “No Rancho Fundo”, escrita por Mário Teixeira, evidencia como a novela usa a variação linguística para construir um retrato às vezes nem tanto fiel, porém sempre respeitoso do sertão nordestino. Ao retratar um vocabulário regional rico e distinto, a novela contribui para os estudos de variação linguística no Brasil, mostrando como a fala não-padrão pode ser inserida no entretenimento de massa. Ao mesmo tempo, ela promove um olhar mais inclusivo sobre a diversidade linguística do país, abrindo espaço para novas discussões sobre identidade, regionalismo e preconceito linguístico na mídia brasileira.
Assista a abertura de “No Rancho Fundo” na voz da consagradíssima Elba Ramalho:
Referências bibliográficas:
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João Paulo Silva – @oviajantedasestrelas