Alguns poemas do livro virtual Poemas de penumbra e claridade

9 min. leitura
O livro pode ser lido na íntegra em www.wanderlinoteixeira.com.br

Chiaroscuro

Na casa dos avós,

réstias de sol nas frestas das treliças

anunciavam o nascer dos dias.

Broa de milho em fatias,

leite gordo dos currais

espantavam as preguiças matinais.

Na casa dos avós,

a luz bruxuleante das lamparinas

projetava nas paredes

equilibristas sem redes

e esguias bailarinas.

Na casa dos avós,

aprendi que vida é ambiguidade:

penumbra e claridade.


Placidez e turbulência

Na água rasa da maré vazante,

porte elegante de moça bonita,

a garça fita a linha do horizonte.

Parece que medita em placidez,

distante de angústias e pressões.

Justo ao contrário fez meu pensamento:

ganhou altura em voo turbulento,

agora enfrenta raios e trovões.


Similitude

O rio,

líquida serpente,

se arrasta lento pelo chão do vale.

Na cachoeira,

é boi de rodeio,

cavalo xucro, sem freio.

À maneira dos viventes,

o rio segue seu curso:

ora ameno, ora rangendo os dentes.


Insônia

Evoco lembranças

no silêncio da noite.

Umas surgem mansas;

outras são açoite.


Indagações

Quantos sigilos levam consigo essas pessoas

que passam apressadas pelas calçadas?

Quantas desesperanças, quantas lembranças boas?

Quantos sorrisos, quantos prantos?

Quantos desenganos, quantos espantos?

Quantos planos, quantos medos?

Quantos segredos guarda debaixo dos panos

quem passa com pressa pelas quebradas das calçadas?


Meu chão

A casa e suas sutilezas.

Gosto que meus passos a percorram em seus espaços,

viagens em torno dos meus acertos e das minhas incertezas.

A casa e suas miudezas.

Porto de onde parto e para o qual sempre retorno.

Âncora e vela.

Gosto dos segredos que habitam a casa,

abrigo dos meus degredos voluntários.

 A casa e os desvãos de seus armários.

Nela se aninham meus assombros e meus medos,

que se debruçam, quando em vez, no parapeito da janela.


Tudo por um triz

Do aconchego do ventre ao suspiro derradeiro,

vida é arrepio,

fio que se esgarça por inteiro,

fino traço, linha torta,

sopro que escapole pelo vão da porta.


Decrepitude

Esse corpo traz consigo poucos traços

do viço que teve outrora.

Agora é só lampejos e resquícios e cansaços.

É tecido que se esgarça,

fonte esparsa de desejos,

ninho sem parceria,

taça vazia de vinho.

No fim da jornada,

esse corpo é só um fio,

um sopro, um arrepio,

um suspiro, um quase nada.


Bravata

Sem corpo e sem rosto,

parteira em sentido oposto,

cruel, zombeteira,

a Dama Sinistra

desata as amarras,

lambe os beiços, afia as garras.

Quando a malvada fungar em meu cangote,

terei comigo um chicote e uma faca de corte.

Sei que cada chicotada,

cada lanho no lombo da bandida,

não redundará em nada:

a Dama é dona da Vida.

Ainda assim, não me entrego.

Carrego comigo um chicote e uma faca de corte.


Um violinista na calçada

Notas dissonantes pautam o momento:

umas vêm do afago do arco nas cordas do instrumento,

outras pingam na caixa pousada na calçada

(meras migalhas para alguém deveras virtuoso).

No mais, magra plateia e um ir e vir sempre nervoso.


Nebulosa manhã

A cidade amanheceu londrina.

A ilha, em meio à neblina,

é sombra fugidia no mar quase lagoa.

Onda nenhuma, nenhuma espuma,

apenas o sussurro que o marulho entoa,

sintonia fina com a nostalgia

neste dia em que a cidade amanheceu londrina.


Que pena…

Tempos atrás,

havia um pássaro sem graça.

Voava baixo, não se vestia de cores,

não se incluía entre os cantores.

Gostava de bicar o chão da praça.

Algo assim, jamais imaginei:

acordei com saudade dos pardais.


Ubi sunt

Foi ao chão a última casa da praia.

Fico a relembrar quintais, varandas e varais.

Sou capaz de ver os trilhos onde o bonde se  sacudia

e cadeiras na calçada no final do dia.

Os escombros da casa da praia pesam-me nos ombros.


Poeminho arteiro

Vou plantar avencas no asfalto.

Num salto, colherei estrelas em pencas.

Pretendo ir ao céu

tocar banjo para o anjo Gabriel.

Também beijarei alguém de surpresa.

Para a mais convincente certeza,

vou botar língua e dar banana.

Que tal tomar caldo de cana em taça de cristal

e ir, só de avental, à posse do imortal?

Sem remorso ou trauma,

vou fazer estripulias de lavar a alma.


Contraste

Aquele jovem de vinte anos

não traça planos,

não esboça ponte sobre o abismo.

Poeta do pessimismo,

trança fios de desesperança

e agruras nos agoras.

Já este poeta de setenta inventa auroras.


Na contramão

O tema será o amor.

Num tempo tão aziago,

tão repleto de rancor,

por que não versos de afago?

Talvez me arrisque à pecha de piegas,

de vate de verso raso,

de quem almeja, às cegas,

as alturas do Parnaso.

Ainda assim, insisto em meu intento.

Para não correr perigo

de dar abrigo ao clamor maledicente,

o poema terá um verso somente,

vela exposta ao vento, janela aberta, semente,

mesa posta, som de canto bom.

Eis o verso, primeiro e último,

solitário e múltiplo:

“Te amo tanto que nem sei quanto”.


Pedra do Índio

No dorso da pedra que brota do mar,

 o perfil do rosto do índio se destaca.

Com que faca o vento o esculpiu?

Criou em segredo na rocha nua?

Alguém o viu moldar o rochedo?

Talvez as estrelas, com seus olhares de brilho farto.

Quem sabe a lua, debruçada na janela do seu quarto.


Tim-tim

Juntou suas lembranças, suas crenças,

suas parcas premissas,

suas toscas promessas,

seus estresses, suas preces, suas pressas

e ergueu um brinde às esperanças esparsas


Oásis

A jovem, loura e sorridente,

desliza de patins pela calçada

Quem me dera desvendar o que lhe vai na mente,

o que a faz sorrir assim tão desarmada.

A jovem não pressente o meu desejo,

segue em frente, deslizante e bela.

E eu vejo ir adiante

aquela que na claridade da manhã surgiu do nada,

tão desligada do futuro incerto.

Súbita miragem no deserto da cidade.


Afago nas árvores da praça

Quem passa com passo apressado

e põe de lado as árvores da praça,

parece que se esquece:

elas geram sombras, abrigam ninhos,

vestem de verde a paisagem.

Quem passa com passo apressado,

focado em seus descaminhos,

não dá sentido à viagem.

Quem passa com pressa pela praça,

às voltas com premissas e certezas,

não se faz capaz de assimilar sutilezas.


Sem mais nem menos…

Surgiu do nada o aroma de goiabada,

doce recordação da casa dos avós.

Há certas coisas sem explicação.

Melhor não tentar desatar seus nós.

penumbra e claridade

Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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