Textos do livro Noturno em mi bemol

14 min. leitura

Noturno em mi bemol & outros contos ligeiros. Wanderlino Teixeira Leite Netto. Clube de Literatura Cromos. Niterói, RJ. 1995. Capa de Mário Caria Filho sobre desenho de Raquel Ponte.

Outros textos de Noturno em mi bemol podem ser lidos em www.wanderlinoteixeira.com.br

Meia-volta, volver!

         Frequentou rígidos colégios. Foi seminarista. Acabou militar. Na caserna, uma frase pautou-lhe o comportamento: “Não explique, faça!”. Por tudo isso, a espontaneidade não era o seu forte.Especializou-se em “engolir sapos”. De todos os tamanhos e espécies. Jamais contestava um superior hierárquico, por mais absurda que lhe parecesse a opinião do outro. Era como se tivesse uma tarja negra a embotar-lhe o raciocínio, principalmente quando se tornava necessário reagir às ofensas, às grosserias. Cresceu ouvindo que isso não podia, aquilo também não. Os pais, os professores, os padres os oficiais, bando de repressores. Em sua vida havia um marco divisório. Nítido. Inquestionável. Fora uma criança criativa, curiosa, autêntica. Até completar sete anos, quando passaram a educá-lo mais efetivamente. A partir daí, começou a virar caramujo.

         Passou o dia pensando nisso, após entalar-se com as verdades que não dissera ao coronel-comandante. Nunca sofrera tamanha injustiça, nunca fora tão vilipendiado, mas as palavras não lhe saíram. Represaram-se na garganta, formando um bolo de sabor amargo. Teria tanto a dizer, não fosse a tarja negra…

             Passava da meia-noite quando se deitou. Não conseguiu conciliar o sono. Ficou remoendo o desaponto, ruminando a decepção, tentando digerir o fel do não-falado. O mal-estar que se instalara em seu estômago aumentou, veio subindo para explodir num arroto estrepitoso. Vomitou em seguida. Um líquido negro e viscoso. Finalmente adormeceu.

             Acordou com o dia já passando da metade. Não compareceu ao quartel. Sequer justificou a ausência. Sentia-se leve. Preferiu ir à praia. Mergulhou em águas límpidas. Caminhou, respirando a leveza da brisa. Foi ficando até ver o Sol debruçar-se no parapeito da noite. Quando se apresentou ao coronel-comandante, disse-lhe todas as verdades que não falara na véspera e mais algumas de há muito engasgadas. Seu nome cantou na quarta parte do boletim, a que aborda a justiça e também a disciplina.

             Acomodou-se no colchão duro da cela e dormiu um sono bom. Ao acordar, pareceu-lhe que a cama encompridara durante a noite, que a farda espichara. Saiu dali direto para a enfermaria. Afinal, nem a cama nem a farda haviam aumentado de tamanho. Ele, sim, encolhera. E continuou encurtando, para espanto do coronel-comandante, do capitão-médico, da sargentada, de todo o regimento, enfim. Deixou o quartel naniquinho, feições de menino. Criativo. Curioso. Autêntico.

Você por aqui? Sozinha? Num sábado?

             Era um desses bares da orla marítima, propício ao jogo da sedução, principalmente em finais de semana, quando as pessoas se livram das armaduras, dos escudos, das espadas, e partem para a luta, por paradoxal que pareça. Reduto de gente de meia-idade, diferente do bar ao lado, local de azaração.

    Quando chegou, ela já se encontrava. Ao acomodar-se, ele o fez estrategicamente, de modo a tê-la em seu ângulo visual. Eram os únicos desacompanhados. As demais mesas abrigavam pelo menos duas pessoas. Havia as de três, quatro ocupantes e até duas formando uma, onde um grupo acabara de se alojar.

             Pediu uma dose de campari. Puro, com gelo. E uma porção de provolone à milanesa. Ela, por sua vez, optara por chope e casquinha de siri. Fitaram-se, mas ela evitou o olho no olho. Três vezes consecutivas. Na quarta, não desviou o olhar. Piscou para ela.Coisa antiga, mas funcionou. Percebeu-a ruborizar-se. Ofereceu-lhe campari. Ela balançou negativamente a cabeça. Devolveu o gesto, ofertando-lhe chope. Foi a vez de ele recusar. Delicadamente. No bojo de um sorriso. Teve ímpeto de sentar-se ao lado dela. Conteve-se. E se ela o rejeitasse? Notou que ele vacilava. Será que o inibira? Melhor não alimentar esperança. Desviou novamente o olhar. Oportunidade é assim, ele pensou: cabeluda na frente, calva por detrás. Surgiu, é tratar de agarrá-la. Pelo topete!

             Chamaram novamente o garçom. Ele pediu chope. Ela, campari. Puro, com gelo. Olharam-se mais uma vez. Sorriram. Brindaram. Preparava-se para agarrar o topete quando as amigas apareceram.

             “Você por aqui? Sozinha? Num sábado?”

             Felizmente, não passaram de meteoros: aparição efêmera. Tal como surgiram, foram-se. Contribuíram, porém, para fazer com que a oportunidade novamente lhe desse as costas, exibindo-lhe a calva. Já nem sabia o que pedir: chope ou campari? Conhaque!

    Ela já não olhava em sua direção. Parecia desinteressada. Antes de retirar-se, apelou: enviou-lhe um torpedo.

             Abriu lentamente o bilhete. Apenas o endereço. Nada mais. Nem mesmo o nome do remetente. Pagou a conta e caminhou para o ponto de táxi.

             A campainha soou. Ele a recebeu trajando roupão de seda pura. Antes de irem para a cama, ela indagou: “E as crianças?”.Foram para uma festinha. Barra limpa!

             Estavam excitadíssimos. Surtira efeito a fantasia. Funcionara melhor do que da vez anterior, quando ele teve que se vestir de guarda de trânsito e multá-la oito vezes antes de rebocá-la para o aconchego dos lençóis.

Rapunzel de cabelo preso

             Semana que vem completarei sessenta anos de idade e quarenta e dois de casada. Casei-me novinha, tão logo deixei o colégio de freiras, aquelas que me incutiram restrições e reticências. Os primeiros cinco anos foram de magia e encantamento. Varria o castelo de quarto e sala, passava os ternos do príncipe, alimentava-o. E me sentia feliz. Logo vieram os filhos. Três. Em escadinha. Adicionei fraldas e mamadeiras ao meu cotidiano. As crianças começaram a adolescer quando percebi estar vivendo uma vida equivocada. O príncipe, na verdade, era sapo! Carcereiro dos meus sonhos. Por que não me libertei? Penso nisso e não tenho dúvidas: faltou alguém que me subisse pelas tranças, mas sempre fui uma Rapunzel de coque, impedida de soltar os cabelos. Mulher de um homem só. Ou melhor, porque meu marido é um bruxo, de homem nenhum. Na verdade, ele precisava de alguém que mexesse o caldeirão onde cozinhava a vida. Foi então buscar-me. Quem sabe até em conluio com as freiras. Houve um momento em que quase fui salva, mesmo sem as tranças. Quando aconteceu, eu ia completar trinta e oito anos. Bonita, eu era bonita! Meus olhos verdes, que ainda brilham, naquela época reluziam.

             Tudo começou na concorrida tarde de autógrafos. Lá estava eu, na fila, aguardando minha vez, coração aos pulos. Mas não levava o livro que o poeta estava autografando. Sem dinheiro para adquiri-lo, trazia comigo obra de outro autor, que ele prefaciara. Minha vez, finalmente. Senti a perna tremer, um frio na barriga, um calorão nas faces. Os olhos, sabia que faiscavam.

             “Você tem esse livro? Que tal trocá-lo pelo que estou lançando hoje? Faz tempo ando à cata dele. Tinha alguns exemplares. Fiquei sem nenhum”.

             Recusei a proposta. Talvez pela fila que se alongava, certamente por motivos inconfessáveis, não insistiu. Caprichou na dedicatória. No pé da página escreveu o número do seu telefone.

             “Para o caso de você mudar de ideia”.

             Procurei outro exemplar. Acabei encontrando, num sebo. Em perfeito estado. Sem dedicatória. Então, a folha de rosto abrigou minha letra, meu afeto, minha admiração. Impetuosamente, liguei para o poeta. Quando me dei conta, estava em sua casa. Recebeu-me de bermuda, descalço, peito nu, cabelo quase em desalinho. Adoravelmente provocante. Procurou colocar-me à vontade:

“Um uisquinho?”.

             Preferi refrigerante. Mostrou-me um disco. Poemas de sua autoria, musicados por gente tão famosa quanto ele.

             “Gosta?”.

Não consegui responder. Estava zonza, confusa, perna mais bamba, barriga mais fria, face mais afogueada do que quando enfrentei a fila de autógrafos. O disco girava. Minha cabeça também, em rotação mais acelerada. O som do violão, a voz do poeta, a música, tudo se confundia. Folheou o livro. Leu a dedicatória. Sorriu. Sentou-se no sofá, perto de mim. Afastei-me. Voltou a sorrir. Sorveu prazerosamente um gole de uísque. Ficou olhando para mim e para o gelo do copo. Fez um comentário a respeito do livro. Aproximou-se. Afastei-me. Aproximou-se. Foi aí que me deu aquela bobeira, aquele remorso prematuro e descabido. Ai, meu Deus… Larguei o poeta falando sozinho, elogiando minha letra, minha dedicatória, meus olhos, meu corpo, meu tudo. Ávido por dependurar-se em minhas tranças inexistentes. Fui para casa esquentar o umbigo na beirada do fogão, servir o jantar para o amo e senhor. E ele nem elogiou. Comeu até fartar-se, é verdade. Mas nem sequer falou do tempero…

O motorista de Sua Excelência

             A posse acadêmica transcorreu como de praxe: o padrinho elogiou o recipiendário, que teceu loas ao antecessor e ao patrono. Como sói acontecer, o sodalício acolheu todas as vaidades, poliu-as convenientemente, elevou-as aos píncaros. Findos os discursos, assinado o livro de posse, lauto coquetel, sintoma de que imortalidade e barriga vazia não se coadunam.

             Doralice participou de tudo levemente entediada. Em tempo de carência afetiva, ansiava por alguém para supri-la. Não lhe pareceu haver, no sodalício, um supridor de carências. O senador não entendia assim. Durante o palavrório, não tirou os olhos dela. No coquetel, cercou-a de atenções. Acabou por lhe oferecer carona.

             O motorista de Sua Excelência, a quem Doralice avaliou na casa dos trinta, fez-lhe uma reverência, antes de abrir a porta do automóvel. Cromo alemão nos pés, calça cinza de vinco impecável, jaqueta preta com botões dourados, quepe de general, pareceu-lhe caricato.

             Doralice e o senador acomodaram-se na maciez do banco traseiro. Automóvel importado, painel de nave espacial. Ar refrigerado, televisão, telefone celular. Digno de Sua Excelência.

             No percurso, o parlamentar falou de sua carreira política, das lides acadêmicas, do recipiendário, enxertando alguns galanteios. Comentou a respeito de Pierre, demonstrando satisfação por tê-lo a seus serviços. “Rapaz educado. Leitor de Camões, de Eça, de Machado!”. Pelo retrovisor, Doralice percebeu nos olhos azuis de Pierre um brilho diferente.

             Um ano se passou desde a carona oferecida a Doralice após o coquetel da posse acadêmica. Ela agora não reclamava da falta de afeto. Tinha quem lhe suprisse os anseios. Estava feliz, agradecida ao senador. Tanto que, toda noite, fazia com que Pierre calçasse os sapatos de cromo alemão, colocasse as polainas, vestisse a calça cinza de vinco impecável, a jaqueta preta de botões dourados, envergasse o quepe de general. Assim paramentado, ouvia a amada ler para ele trechos de clássicos da literatura mundial.

             Quanto a Sua Excelência, a partir de quando Pierre o deixou, para suprir as carências de Doralice, deu ordens expressas à secretária no sentido de descartar convite para posse acadêmica. Sodalício, nunca mais!

livro

Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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