Com a nova e tão aguardada versão de Duna vindo do recém-declarado ‘visionário’ Denis Villeneuve se aproximando esse ano, não haveria melhor tempo para se despertar algum interesse em revisitar a primeira adaptação realizada por David Lynch da icônica e aclamada obra de Frank Herbert para a tela do cinema, nem que seja pelo mínimo senso de curiosidade sobre como esta ganhou vida mesmo vinda de uma produção amaldiçoada conturbada, e toda a má reputação geralmente lhe cabida de ser um resultado desastroso como uma adaptação do clássico de ficção científica que é a obra-prima de Frank Herbert. É sim, definitivamente e profundamente falho, tanto como uma adaptação quanto como um filme próprio, mas não sem seu charme atraente, que consegue trazer algum sentimento real de admiração em relação à sua mitologia complexa, vasto universo e envolvente história épica.
O que torna o Duna de Lynch tão interessante à primeira vista é como se logo de cara ele já assumisse a estranheza característica que parte da obra de Herbert, e que já serviu de argumentos inesgotáveis sobre o quanto seria impossível trazer isso para as telas em uma estrutura cinematográfica tênue. Onde a primeira cena é literalmente uma cabeça gigante aleatória de uma personagem que quase não tem falas no resto do filme – a Princesa Irulan de Virginia Madsen – explicando o básico da dinâmica básica do universo de Duna (que é uma referência apropriada vinda do livro dado como cada capítulo começa com uma citação da mesma personagem entregando um contexto ou nuance especifica para cada um dos acontecimentos vindouros).
Explicando tudo sobre o que é a especiaria “melange” e seu valor substancial para o universo e a existência humana em Duna; as brigas entre as casas feudais dos Atreides e dos Harkonnen; quem são a Guilda Espacial, dobradores do tempo e das viagens espaciais, ou as Bene Gesserit, as concubinas feiticeiras, etc; E mesmo dentro desse nível básico, você pode facilmente se perder com tanto informação sendo introduzidas em apenas alguns segundos e, mais tarde, exigindo sua atenção durante o resto da lógica maluca do filme envolvendo quebras de viagens espaciais, poderes psíquicos e pessoas montando vermes gigantes, enfim. Sendo consolidado da forma mais direta e simples por Lynch, ou os produtores que montaram o filme após sua saída da direção, para que tornasse o filme o mais vendável possível.
Já por essa você já é capaz de considerar o filme tendo cumprido um objetivo que anos sem fim tentando trazer esse filme à vida, falharam em alcançar, em tentar simplificar e vender o universo complexo e narrativo de Duna – o que ainda parece impossível. Passando pelas mãos de Alejandro Jodorowsky e seu projeto insanamente ambicioso que nunca teve a chance de ser feito na época (retratado no excelente documentário “Duna de Jodorowsky”), por Ridley Scott recém dirigido Alien e que quase realizou o filme antes que seu irmão Frank Scott falecesse, para então o projeto cair nos colos de David Lynch, que até então estava apenas estreando em sua carreira de cineasta e vindo de sucessos como sua obra-prima experimental surreal e perturbadora de Eraserhead e o filme de monstros/drama de personagens O Homem Elefante, recebendo aclamações e sucesso vindo de todos os lados, o que então lhe garantiram aqui o trabalho para finalmente adaptar Duna.
Porém conhecendo o histórico do diretor hoje em dia, você pode sentir a piada irônica e a idéia absurda que é ter David Lynch, de todas as pessoas, dirigindo um blockbuster de milhões, e o resultado fala por si. Mas naquela época, ele era um novo talento emergente que se tomando forma na indústria, com uma voz e identidade artística única que não devia nada a ninguém em relação às suas inspirações e estilo, já que tudo advinha de sua própria mente psicodélica como um verdadeiro artista insano, proveniente de sua formação atual em pintura e música, e com o cinema sendo apenas um hobby inicial para ele, embora mostrado com um imenso talento para isso como sendo o lugar que ele mais poderia encontrar para experimentar as diversas formas de insanidade visual e narrativa que sua mente poderia invocar.
E sendo Eraserhead até hoje considerado um dos principais pilares da ficção científica moderna no cinema, empacotado de fortes tons filosóficos e surreais, em teoria ele realmente parece uma das pessoas mais certas para comandar o que Duna é por essência. Mas aí que está… Lynch não faz nada por ninguém em relação a projetos, e tudo o que ele colocar em suas mãos inevitavelmente se tornará um filme de David Lynch, não importa o que seja. É até duvidoso o fato sobre se Lynch sequer sabia alguma coisa sobre Frank Herbert e sua obra antes de assumir o filme, ou se sequer leu o livro à fundo depois de admitir que nunca sequer tinha ouvido falar de Duna mesmo depois de ter aceitado assumir o projeto.
Mas vista a integridade narrativa construída por aqui, o filme se mantém, na medida do razoável, bem próximo a estrutura base da história até certo determinado ponto de forma ligeiramente consistente – agora se isso foi por demandas dos produtores ou intenção própria de Lynch é outra pergunta que jamais será respondida; isto é, antes de se descarrilar por completo na metade posterior, que afunda completamente o filme em um conjunto de idéias perdidas e pretensões avoadas. Enquanto que deixa todas as características profundamente religiosas e filosóficas que giram em torno de toda a história e suas camadas complexas explorando um futuro distópico imerso no fanatismo religioso, a ciência e a tecnologia se tornando cultos poderosos próprios e com personagens se desvendando por meio de temas de dever, fé, honra e poder; todos presentes aqui, mas apresentados abaixo de um nível superficial
Com a história caminhando em uma linha tênue entre carregar e mostrar o potencial de se tornar uma verdadeira ópera de ficção científica em um nível Shakespeareano em partes, quando alcança as melhores porções dramáticas do livro, até mesmo aludindo a uma sensação de ‘Lawrence da Arábia’ quando o caminho de o escolhido aqui – ou na língua de Duna: a formação do “Kwisatz Haderach” de Paul Atreides (Kyle MacLachlan) o leva a se tornar uma figura messiânica ao se tornar o líder de uma tribo de rebeldes das areias, treinando-os e armando-os contra um inimigo comum – que foi a principal inspiração do próprio Herbert para a história do primeiro livro.
Ao mesmo tempo em que mostra Lynch tentando fazer um filme próprio, com suas próprias idéias e visões em relação (e além) às escritas de Herbert, fazendo mudanças e com tomadas originais para alguns dos elementos mais famosos do livro, como tornar o Weirding Way’ – a habilidade de luta dos guerreiros Atreides vindo da técnica Prana Bindu de controle supremo de nervos e músculos (você está coçando a cabeça relendo essa parte certo?! é o que acontece quando se tenta explicar Duna em voz alta para alguém), e fazendo ele aqui ser um… “módulo estranho”, uma arma sônica controlada por gritos.
O que não tem nada haver com o livro, mas deve-se que até são legais visto de uma perspectiva escapista de ficção científica. Apesar de não ter nenhuma lógica científica como nos livros da saga Duna em geral, onde tudo fazia parte de um complexo emaranhado da biologia humana evoluída, e que se torna aqui basicamente a própria versão de Lynch para ‘a força’, superpoderes através de gritaria. Todos os mocinhos no filme são basicamente descendentes da Canário Negro!
Enquanto que na mesma medida, o filme recria diálogos e cenas inteiras vindas direto do livro, traduzindo das páginas para a tela com perfeição. Por outro lado, o filme também muda completamente cenários narrativos, algumas caracterizações e fazendo do final um verdadeiro espetáculo melodramático tão desastroso que é tão ridiculamente cafona quanto hipnotizante – e que até carrega algum sentido quando o forte elemento messiânico que o filme assume para o personagem de Paul e a jornada de seu herói tem em si uma conclusão que faz sentido (fazer magicamente chover no deserto). E que apesar de carregar inúmeros traços convencionais e até clichês dentro da história e com os usuais percursos da jornada do herói “Campbelliana”, embora bem… Duna foi o romance que inventou e lançou esses mesmos clichês na literatura da cultura popular em primeiro lugar.
Então, finalmente adaptá-lo foi com certeza uma aposta certa, assim como é para a vindoura nova versão, para fazer o que pode ser o novo Star Wars de hoje, mas para adultos (já que foi assim que eles definiram como a promessa do filme na época), e tendo TODOS os elementos para tal – já que o próprio Star Wars não existiria se não fosse por Duna. Mas o resultado é esse emaranhado de níveis de ida e volta de qualidade intrigante que forma a estrutura de Duna, nunca levando a um nível certo de ser completamente bom ou completamente ruim.
Os primeiros 30 a 40 minutos do filme são surpreendentemente decentes e em boa parte, consistentes, capturando de forma surpreendente a sensação exata do livro quando você o lê. Para o espectador casual, pode parecer meio lento e vagaroso ao explorar algumas das reflexões internas interessantes que vem diretamente da narrativa de Herbert, embora sempre pareça estar com medo de explorar-los completamente à fundo. Ao delinear e misturar todas as melhores partes do livro e sendo postas em grande destaque enfático no filme, mas sem qualquer construção e desenvolvimento costurada entre eles. O que é exatamente o que afeta fortemente a segunda metade do filme até o final formada em um ritmo acelerado demais. Fazendo da criada a sensação de um épico em crescendo que se tinha inicialmente no filme, vir a se perder em uma série de montagens de grandes cenas espetaculares sem nenhuma ressonância significativa entre elas.
Resultado óbvio que vem como efeito do fato de como eles cortaram e filmaram novas cenas, e simplificaram, ou simplesmente ignoraram, elementos inteiros da trama e adicionaram as narrações em off que, embora possa ser bastante intrusivas e desnecessárias para alguns, na verdade não são tão fora de tom ou desnecessárias já que vem a dar algumas nuances extras surpreendentes para alguns dos personagens que mal têm um desenvolvimento apropriado ao longo do filme, e até servem para dar ao filme um tom literário extra que não parece intrusivo, pelo contrário, torna o nível superficial de suas idéias em algo quase lírico.
Onde a superficialidade do mundo torna-se elemento intrínseco ao conhecimento deste universo, à medida que se torna a expressão de idéias sendo jogadas na tela, de interpretações e visões se fundindo em uma forma de expressão cinematográfica. E isso vindo de uma mente insana como Lynch deve ser no mínimo imaginativo e de prender seus olhos. O que funciona muito bem, dadas algumas das atrocidades que são ditas sobre o filme, e que acontecem, principalmente girando em torno do personagem do Barão Harkonnen (Kenneth McMillan) e sua gangue de rufiões ruivos, incluindo um animalesco Sting roubando cenas como Feyd Rautha.
Vindo tudo basicamente como resultado de uma visão bastante confusa que envolve todo o filme, onde você não sabe onde as intenções de Lynch e as demandas do estúdio terminam ou começam, tornando tudo confuso e perdido em suas intenções como filme. Os dois Laurentiis – Raffaella De Laurentiis e seu pai Dino De Laurentiis (produtores), estavam definitivamente mirando na criação de uma nova franquia rumo a se tornar uma grande marca para conquistar as bilheterias, fazendo o novo Star Wars de fantasia e guerra, heróis e vilões no espaço.
Enquanto que Lynch estava lá pela natureza experimental de tudo, e ele até consegue encaixar alguns de seus traços autorais próprios com suas usuais viajadas alucinógenas, entregando aquela camada extra de natureza surreal para o filme que parece ter como objetivo tentar criar essa imagem nua do passado, futuro e presente se fundindo em um e alcançando um nível transcendental de existência de fé em algo que pode despertar as habilidades humanas para níveis divinos. Tomando as palavras literais do personagem de Leto Atreides (de um Jürgen Prochnow bastante decente, embora subutilizado) “Sem mudança, algo dorme dentro de nós e raramente desperta. O adormecido deve despertar ”- e levando para um significado literal e de muito primeiro plano no filme, assim como era parte no livro, e de certa forma conseguindo prestar bastante respeito à escrita de Herbert, mesmo que da sua própria maneira.
O filme definitivamente possuí o espírito maluco e a mentalidade insana de Duna e de suas continuações, mas longe de ter o mínimo da mesma profundidade. Pega suas idéias centrais de revolução e dos questionamentos da idéia de poder, de quem governa, os limites benéficos e destrutivos do culto à mitos e lendas, e que acaba se tornando aqui basicamente uma história metade tragédia Shakespeariana com ecos de Hamlet, para então se transformar em uma aventura pop-rock sobre um bando de roqueiros drogados de olhos azuis derrubando um governo fascista opulento através do poder de GRITAR – agora se há alguma traço alegórico nisso, acaba saindo como outro ponto perdido na leva de confusões que o filme carrega. Com misturas de heróis errantes, interesses amorosos vazios (pobre Sean Young), vilões cartunescos, um perfeito blockbuster de ação ruim cheio de só correria, tiroteio, explosões que parecem tão perdidas e avulsas como seus personagens e as idéias por detrás.
Já em um nível técnico, o filme é uma maravilha visionária, mas também uma realização bagunçada. A cinematografia de Freddie Francis tem alguns momentos genuinamente hipnotizantes – especialmente quando temos o traço de Lynch explodindo na tela. A vasta gama de diferentes figurinos que vão do militar moderno, renascimento feudal e roupas de couro cyberpunk, capturam perfeitamente a natureza futurística diversificada de Duna. O framing em aspecto semi-4:3 e os cenários de aparência rústica junto a um design de produção frequentemente luxuoso, tudo parecem tentar aludir a um épico de Cecil B. DeMille como os Dez Mandamentos, especialmente nas grandes sequências de batalha com milhares de extras reais invadindo a tela, mesmo que por breves segundos subutilizados.
Mas, ao mesmo tempo, todas os efeitos visuais envolvendo os cenários em telas azuis passam no limiar do horrível, enquanto que todas as sequências espaciais parecem datadas até mesmo para a época. Em um contraponto positivo, todos os cenários e adereços de miniaturas são lindos e críveis em criar o senso de escala gigantesco desse universo – até os props como o icônico gigante que personifica os navegadores da guilda espacial parecem algo que evoluiu a partir do bebê mutante de Eraserhead e alcançou uma evolução distópica, e que definitivamente parece impressionante. E a SOBERBA trilha sonora de Toto é uma mistura de orquestra épica e fortemente evocativa com punk rock.
Tudo o que está sendo escrito aqui pode soar tão confuso e indefinido, o que francamente é mais ou menos o que o Duna, o filme, é. Você pode passar o dia todo apontando qualquer coisa que esteja errada sobre ele, como também apontar todas as coisas boas e interessantes que estão legitimamente aqui, e a ÓTIMA história que está em algum lugar por detrás de tudo. Que no final, nos faz amar e admirar ainda mais a obra de Frank Herbet, porque se o filme de Lynch sucede em algo muito bem é conseguir nos fazer ver a história como as pessoas por trás do filme a vêem: épica, grandiosa, profunda e evocativa.
Os atores definitivamente transmitem isso, com Kyle MacLachlan brilhando em seu primeiro papel de destaque no cinema e capturando a personalidade do jovem Paul Atreides de forma precisa. E sendo acompanhado de algumas grandes estrelas espalhadas no filme que vão desde Francesca Annis, Patrick Stewart, Max von Sydow, entre outros que, embora quase não tenham nenhum de seus personagem fundamentalmente explorado, têm peso memorável em suas atuações. Até mesmo Kenneth McMillan, mesmo tão (propositalmente?!) horrível como ele é aqui, ele está definitivamente devorando a cena e se divertindo muito flutuando, gritando e cuspindo na cara de pessoas por puro prazer sádico.
O grande triunfo final do filme de Lynch é que no final das contas o transforma, em meio a todos os seus desníveis e desordenada construção, em algo totalmente memorável e especial. Era o livro inadaptável, o filme impossível de ser feito, uma das produções mais conturbadas de todos os tempos, e ainda assim… foi feito e sobrevive como algo próprio. Como uma aventura épica bem oitentista old-school junto como também uma obra de aspirações surreais de um autor voraz. E isso tudo funciona junto? Provavelmente não, mas é sem dúvidas muito legal!
Texto original publicado em: https://labdicasjornalismo.com/noticia/8051/duna-1984–um-desastre-triunfal
Raphael Klopper – estudante de jornalismo