Depressão e Superação em “O Serviço de Entregas da Kiki”

10 min. leitura

Um título mais apropriado para esse filme deveria ser: “o soco inesperado de emoções pesadamente complexas de Kiki”, e isso hipérbole que parece mais adequado para definir o que pra mim provavelmente é a mais especial dentre todas as obras-primas que formam o currículo de Hayao Miyazaki. Porque além de todo o espetáculo visualmente esplendoroso e a poesia visual que o seu público de fãs devotos já está mais do que acostumado a esperar de um filme do diretor, e do Studio Ghibli em geral, a aventura pela qual o público aqui vem a passar com a protagonista de Kiki é de uma complexidade frágil e talvez difícil de se compreender em qualquer ponto de vista. Atrevo até em dizer que através disso, ele fez o que é o seu filme mais melancólico até hoje, e sim ainda mais que Meu Vizinho Totoro!

Acho que essa é a maior beleza que O Serviço de Entregas da Kiki carrega em si, sobre como se mostra ser um filme que lida com algo tão raro em qualquer tipo de mídia, especialmente nesse caso a animação, e que vende sua premissa como um filme para toda a família e ainda mais focado numa personagem jovem de apenas 13 anos. Mas onde dentro de sua boa e esperadamente ‘usual’ história sobre amadurecimento e crescimento, lida abertamente com temas que vão para além de uma solucionável tristeza ou desafio antagonista, e sim estes tomam forma nos sentimentos de frustração, medo, um estado de quase pré-depressão já presentes em uma tão nova idade de uma pré-adolescente por qual Kiki se vê atravessando em sua fase de saber ter que lidar sozinha com o mundo afora e todas as responsabilidades que começa a carregar em sua nova forma de independência e trabalho, mas sofrendo a pressões e medos que a mesma vida estão para lhe proporcionar.

Caracterizar a personagem como uma jovem bruxa, e com todo uma mitologia por volta disso sendo apresentada em apenas 5 minutos de filme de forma incrivelmente eficaz em sua simplicidade, e colocar a personagem vivendo nesse mundo de uma cidade européia que meio remete a década de 40, são só chamarizes extras da incrível fantasia que o gênio criativo de Miyazaki é capaz de criar (ou re-adaptar de outra fonte como fora o caso de Lupin em Castelo Cagliostro). E dentro desse universo de escalas inimagináveis da imaginação, com realidade e fantasia convergindo em uma só, seguindo quase sempre uma aura de altruísmo quase inquebrável e que muito bem engana o público de pensar que isso vai ser uma assistida 100% confortável e doce (o que também é), é onde a sua protagonista enfrenta seu maior desafio. E este não vem em forma de uma figura de vilão algum presente aqui, e sim, parte dentro dela mesma.

Ilustrando que até mesmo uma jovem, que carrega esses poderes mágicos que nem ela própria sabe controlar, é capaz de cair ao ser empurrada pelo maior questionamento da vida: até onde isso tudo vai?! Até onde todo o seu esforço duro poderá lhe levar e quais frutos ela poderá escolher?! Ela está sendo uma boa bruxa e ganhando independência com seu trabalho de entregas, ou é tudo uma enorme perda de tempo que a faz ficar emperrada no mesmo lugar sem um vislumbre de uma possível escapatória?! Uma forma de tristeza e dúvidas cruéis que começam a corroer dentro de Kiki, e que nem toda a simpatia e bondade do mundo que parece cercar todas as pessoas no qual ela cruza o seu caminho ao longo do filme são totalmente capazes de lhe ajudar a superar tal dor.

E onde na verdade, esta mesma compaixão pode ser vista como algo que faz com que Kiki perca a fé nela mesma, dela estar sempre dependendo dos outros para ela realizar seu trabalho, que terminam sendo sempre difíceis e com poucos frutos no final, financeiros e de reconhecimento. E quando esse sentimento de real ansiedade desperta dentro dela, de forma silenciosa e inexplicável, tanto para ela quanto para nós o público, as suas dúvidas e frustrações começam a lhe afetar os próprios poderes. Que a faz não conseguir mais levantar vôo com a vassoura velha de sua mãe nem mais entender o que Jiji, seu gato, fala, e até ele próprio começa a se afastar de Kiki. Ambos símbolos de sua dependência com o passado, com a inocência de criança que ela agora começa a abandonar quando a assustadora e imprevisível vida adulta começa a lhe rondar a mente e seu âmago. Se torna tudo tão difícil e melancólico da maneira mais difícil que você pode pensar e te pega completamente desprevenido.

Mas em meio a isso há, por assim dizer, uma forma de resistência por parte de Kiki, uma forma de resiliência feminina que tanto pode lhe ser uma arma negativa como positiva. Na forma com que ela se recusa a aceitar se encaixar nos padrões de vestimenta e atitudes femininas que lhe são impostas, lutando por sua independência não importa o que, mesmo que isso lhe faça parecer que afaste algumas das pessoas à sua volta, ou cometa erros que parecem insolúveis. E quando ela decai em seu estado de melancolia, é na companhia de uma amiga e fiel companheira cujo após compartilhas das mesmas experiências e frustrações, lhe inspira a continuar e buscar um recomeço apesar de tudo que tente lhe afastar de executar seus talentos. Mas vejam só não é mesmo?! Nem todo criador por detrás de uma história altamente feminina precisa ser mulher para convencer uma singela profundidade genuína por detrás de cada traço que esses complexos pontos carregam, não é mesmo?!

E a beleza de tudo isso aqui, assim como fora em Totoro e como em todo filme de Miyazaki, ele lida com esses temas e símbolos de forma mesmo que dentro de um mundo de vislumbre infantil, possui uma maturidade incrível dentro de sua narrativa, mesmo que toda uma aura inocente e ingênua. Na forma com que segue Kiki em sua luta individual com uma tristeza cujo não sabe explicar o que é enquanto a tenta superar. E no final, nem o precisa! Pois mesmo depois de ter realizado um grande feito, o grande e épico clímax do filme que aparece abruptamente do nada, mas que como de se esperar, é realizado de forma impressionantemente deslumbrante, tensa e eficaz, que faz Kiki comprovar todo o seu potencial perante o mundo inteiro; ela ainda termina o filme dizendo abertamente em seu singelo monologo final sobre como ela ainda se sente só e triste, mas mostra saber agora conviver com a mesma dor, e ainda continuar se esforçando para um futuro melhor e aproveitando as boas pessoas que tem ao seu lado, seus verdadeiros frutos de tudo.

Se isso não é uma representação clara sobre a jornada de luta da vida que alguém enfrenta pelo menos em um momento de sua vida, então eu simplesmente não entendi nada sobre este precioso filme. E Miyazaki realiza tudo com uma forma tão genuinamente profunda e melancólica, embora que seja coberta de sua aura de fantasia e esperançosa em um altruísmo que parece perseguir todos os percalços por onde os personagens passeiam. Kiki talvez represente todo o seu genuíno humanismo na forma de realizar todos os seus filmes, mas também, isso pode servir como definição para cada um de seus filmes. O fato da questão é que Kiki é, mais uma vez, um dos seus mais fortes e melhores, e é muito capaz de achar um lugar bem confortável de apego e relacionabilidade no seu coração.

Raphael Klopper – estudante de jornalismo

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