Alguns textos de Andanças Andinas

9 min. leitura

Andanças andinas. Wanderlino Teixeira Leite Netto. Niterói: Clube de Literatura Cromos, 1997.

Capa: Mário Caria Filho. Ilustrações: David Queiroz. Quadro da capa: Cuzco – óleo de Verônica Accetta. Bico de pena do autor: Miguel Coelho.

Outros textos deste livro poderão ser lidos em www.wanderlinoteixeira.com.br

Texto 3

Ela estava lá, na parte pedregosa do quintal. Como não era tempo de tosa, seus pelos cor de telha cresciam desordenados pelo corpo esguio. Em torno dela, homens e mulheres das mais diversas idades sacavam exclamações das algibeiras. Impassível, dócil, paciente, deixava-se fotografar. Entretanto, o mais significativo na alpaca era o olhar de compreensão que dedicava aos humanos.

Texto 9

andanças

Algumas casas se espalham pelas ruas sinuosas e estreitas, mas o coração do povoado pulsa às margens da linha do trem: uns poucos restaurantes rústicos, bares, pousadas modestas, a farmácia, a delegacia de polícia, o posto telefônico, a agência dos Correios e um pequeno mercado de frutas, hortaliças e ervas enfileiram-se em ambos os lados da estrada de ferro.

O mais singular naquela fatia do mundo é o comércio desenvolvido no leito da ferrovia, de perspectivas tão estreitas quanto a bitola da linha férrea. Para os que ali expõem mercadorias, o trem é relógio de ponto: após sua passagem, pela manhã, inicia-se a lida; à tardinha, quando ele apita na serra ao sopé da montanha, é hora de encerrar o expediente. Assim acontece, dia após dia, na feira dos dormentes.

Texto 10

O Isla Esteves localiza-se às margens da baía de Puno, no lago Titicaca. É um hotel luxuoso para o padrão de vida existente na capital do folclore peruano. Está em Uros, porém, nas islas flotantes, a maior atração.

No Isla Esteves, durante o lauto café da manhã, daqueles de peles alvas e faces rosadas aos de olhos apertadinhos, todos, invariavelmente, estão atentos às precariedades de Uros. Quem lá esteve conta o que viu. Os que ainda não foram se põem a imaginar. Breve, por lá aportarão. Ao regressar para os seus países, a maioria buscará apagar da memória a penúrias das islas flotantes.

É possível que alguns levem consigo uma ponta de inquietude. Nada tão sério a ponto de lhes tirar o sono. No aconchego de suas casas, dormirão em paz. Na qualidade de atração turística, miséria não gera traumas.

Texto 12

Celeste coleciona metáforas Num enorme baú, no sótão de sua casa, tem mil e quinhentas devidamente catalogadas. Jamais deveria ter ido ao Vale de la Luna, em La Paz. Viu de perto a aridez, as crateras, os mares empoeirados. Ao retornar, ainda no bojo do desaponto, atirou por uma janelinha do sótão trezentas metáforas de sua coleção. Como era comemorado o Dia dos Namorados, fez enorme sucesso a revoada de imagens poéticas. Desesperada, Celeste passou a desmetaforizar de viva voz o satélite. Dia seguinte, tachada de lunática, ocupava as manchetes dos jornais.

Texto 15

No comércio das crendices, tão comum no altiplano, a Rua das Bruxas se destaca. Lá, em meio a ervas e poções, estão expostos fetos de lhamas ressequidos e disformes. Atraem sorte, dizem. Com a utilização de um instrumento contundente, quase sempre um pedaço de pau, o aborto é provocado. E assim, na capital da Bolívia, o que era sopro de vida se transforma em amuleto.

Texto 19

andanças

Na primeira vez em que visitou a cidade sagrada, Tiago deixou-se ir na leva de turistas, atento à fala do guia, um mestiço orgulhoso de sua descendência indígena. Manhã seguinte, voltou só. Escolheu um local sossegado, distante do falatório, e sentou-se numa cavidade da rocha. O ar, rarefeito e frio, causava-lhe estranha sensação, misto de prazer e desconforto. De onde estava, podia ver a estrada, ziguezagueante e íngreme, formando lanhos na vegetação da montanha. Também o rio, na curva do vale. Lá embaixo, parado na estação, o trem, lagarto aquecendo-se ao sol. Subitamente, sentiu-se compelido a brincar com o eco. A primeira palavra, gritada a plenos pulmões, ricocheteou nos rochedos antes de voltar para junto de seus ouvidos. Da mesma forma aconteceu com as demais. Uma delas, porém, não retornou, embora a repetisse insistentemente. De tanto gritá-la, sem obter resposta, foi perdendo a esperança. Numa última tentativa, balbuciou a palavra insubordinada. Finalmente, lá no abismo do peito, a Liberdade ecoou.

Texto 24

andanças

Naquele tempo, doar uma filha para os ofícios religiosos era motivo de orgulho e alívio. No Convento de Santa Catalina, numa viela onde se erguem os cubículos que abrigavam as noviças, há um canteiro de gerânios. Onde ontem murchavam vidas, hoje vicejam flores.

Texto 25

O companheiro de Selene bem a conhece, razão pela qual compreende e respeita suas fases, suas faces. Selene tem plenilúnios e aí refulge. Também é dada a momentos minguantes. Pode até eclipsar-se, caso a timidez se alinhe à insegurança. Mas não permanece obscura por muito tempo. Inteiramente renovada, logo volta a brilhar.

Quando o elogiam por tanta compreensão e respeito, o companheiro de Selene sorri. A seguir, pausadamente, revela um segredo: “em noites enluaradas, por uma fenda na abóboda do teto, um raio prateado penetra na Caverna de la Luna e expande-se para formar no chão de pedra um leito iluminado. Nesse ambiente de penumbra e claridade, Selene foi gerada.”

Texto 29

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Do alto da colina, vendo o rio serpentear pelo vale, o guia apontou para as casas lá adiante, cujos telhados apareciam no cocuruto do morro. Pausadamente, falou: “Esta cidade foi destruída onze vezes por terremotos. Onze vezes sua gente a reconstruiu.” Ao que o turista lhe indagou: “Por que, então, você continua lá?” Mais compassadamente ainda, ele respondeu: “Pode ser que um novo terremoto a destrua…”

Texto 34

Nas fraldas da adolescência, Timotea e Jerusa vendiam mantas, mochilas e bijuterias. Pelo que lhes disseram, ficava-lhes uma leve sensação de progresso, relativamente aos seus ancestrais. Afinal, os forasteiros já não saqueavam ostensivamente. À noite, viam novelas brasileiras dubladas em espanhol. Apaixonadas pelos galãs alienígenas, cultivavam quimeras. Um dia, quem sabe, um desses príncipes saía da tela, no dorso de um condor, e a levava com ele ­ Timotea imaginava. Jerusa, mais modesta em seus devaneios, desejava apenas casar-se, ter um filho e batizá-lo com o nome do herói preferido.

Sabe-se que Timotea se foi, só que em lombo de lhama, levada por um camponês. Quanto a Jerusa, gerou o filho tão sonhado: chama-se Sandoval, o mesmo nome do pai, um feirante ciumento e possessivo.

andanças

           

Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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