Alguns contos de Beijo de língua

Beijo de língua. Wanderlino Teixeira Leite Netto. Editoração Editora. RJ, 2007

11 min. leitura

Índice

     O guardador de quimeras

     Luz e sombras

     O passaporte

     Defeito de fabricação

     À sombra das marquises

     No mundo da Lua

     Trevo de quatro folhas

Outros contos deste livro poderão ser lidos em www.wanderlinoteixeira.com.br

O guardador de quimeras

             De uma herança inesperada, Jacó viu-se de posse de um pedaço de terra. Até decidir o que fazer com o minifúndio, buscou preservá-lo de possíveis invasores, erguendo em torno dele viçosa cerca viva. Na entrada, uma porteira, dessas que rangem no abre-fecha rotineiro.

             Certa manhã, sob intensa neblina, Jacó ouviu uns soluços no quintal de sua casa. Varou o nevoeiro em direção ao choro. Recostado ao tronco de uma goiabeira, quase encoberto pela névoa, um sonho que ele um dia abandonara vertia lágrimas. Jacó sentiu pena do pobre, tão carente de acalanto. Presenciar o desalento da quimera mostrou-lhe o destino a ser dado às terras herdadas. Dia seguinte mesmo, deu início à construção das baias. A melhor delas, a mais espaçosa, ele a reservou para o sonho soluçante, tangido para lá num fim de tarde, tão logo se tornou possível abrigá-lo. Feito isso, Jacó rebuscou na memória velhos desejos havia muito esquecidos e também os acolheu. Duas vezes por dia, cuidava de alimentá-los: feixes de feno, sal, capim, farelo… E os sonhos lambiam os beiços.

             Por fim, Jacó noticiou seu novo ofício: guardador de quimeras. Inicialmente, atendendo a pedidos, deu guarida às mais próximas. Depois, saiu à cata das desgarradas. Certa vez, na boca da noite, viram-no pastoreando um rebanho de sonhos encontrados ao relento. Dizem até que chegou a abrigar utopias em seu estábulo. Há quem afirme haver presenciado Jacó depositar um torrão de açúcar na boca da que fora por ele encontrada, quase agonizante, na curva da estrada. Quando aconteceu, a tal utopia tinha um olhar mortiço, que agora é luz!

Luz e sombras

             Em plena adolescência, Carolina encasquetou: no seu rastro luminoso, uma estrela cadente traria até ela a felicidade. Nesse afã, em noites propícias ao acontecimento, pôs-se a fitar o céu. Ao longo do tempo, viu inúmeros meteoritos riscarem o firmamento, mas nenhum deles transformou em realidade a premonição.

             Carolina não desanimou, habituou-se a olhar para o alto também em noites nubladas e mesmo nas chuvosas. Não dizem que a felicidade surge de onde menos se espera?

             Faz uma semana deram-me notícias de Carolina. Ininterruptamente, tão logo escurecia, acomodava-se numa espreguiçadeira na ampla varanda da casa de repouso na qual se internara, ajeitava os óculos de ver de longe e ali permanecia até o amanhecer. Certo dia, alguém se deu conta de que a vigília terminara. Além disso, nada mais me disseram, nem podia ser diferente. Afinal, enquanto Carolina esperava a felicidade cair do céu, sua vida se transformara num eclipse total.

O passaporte

             Gislene postou-se defronte da vitrina e olhou demoradamente para o objeto ali exposto. Alheia ao burburinho à sua volta, retrocedeu quatro décadas, relembrou-se aos treze anos, diante de Elaine, recém-chegada de Vitória. Oito anos mais velha, morena, esguia, cabelos ruivos, olhos verdes, a figura de Elaine se destacava.

             Além dos atributos físicos e da peculiaridade fisionômica (a ponta do nariz de Elaine, quadrada, emprestava-lhe sutil singularidade), havia algo mais a despertar a admiração de Gislene pela afilhada de seus pais: o reluzente anel de noivado no anular da mão direita.

             Mas Elaine também fustigou Gislene ao depositar sobre a cômoda do quarto de hóspedes vistosa frasqueira. O que guardaria ali a capixaba? Para Gislene, aquilo era coisa de mulher feita. Não bastava sangrar todo mês. Para ingressar no mundo adulto, era preciso possuir uma bolsa daquelas.

             Gislene acabou por descobrir a serventia das frasqueiras: abrigar desimportâncias. Para espantar o desaponto, deu outro sentido à maleta ovalada, quando de uma se tornou proprietária. Numa das divisórias, acomodou a insegurança; noutra, a mania de apequenar-se. Feito isso, baixou a tampa, trancou o cadeado e se desfez da chave.

Defeito de fabricação

             Adílio, já no berçário, primava pela perfeição. Enquanto os demais bebês se esganiçavam, ele chorava afinado. Ao espernear, não amarrotava o lençol. Mais adiante, no colégio, todos elogiavam seus cadernos impecáveis, sua letra bem talhada, o uniforme que lhe caía feito traje a rigor.

             Diplomou-se em Jornalismo, profissão exercida até o dia em que, numa de suas matérias, descobriu uma vírgula intrometida entre o sujeito e o verbo. Dia seguinte, demitiu-se.

             Exímio sonetista, extravasava seu pendor parnasiano, mas rejeitava o resultado, sempre em busca da palavra mais exata para o fecho de ouro.

             No plano amoroso, por não conseguir encontrar a mulher perfeita, mantinha fugazes relacionamentos. Aos 50 anos, curtia solitariamente seu perfeccionismo.

             Certo dia, durante um preventivo exame de saúde, disse-lhe o médico: “Sua ultrassonografia revelou algo congênito e sem gravidade”. Sorridente, arrematou: “Um pequeno defeito de fabricação, nada além disso,”

             Por uma semana, Adílio ruminou o desaponto de haver abrigado nas entranhas, por cinco décadas, a tal imperfeição. Na manhã do sétimo dia, após banhar-se demoradamente, barbeou-se, vestiu cueca de grife, calça vincada, camisa impecavelmente branca, paletó de excelente caimento, meteu-se em meias de seda, sapatos de cromo alemão, enlaçou-se com um cinto de fivela dourada, penteou cuidadosamente os cabelos, perfumou-se. Em seguida, passos cadenciados, dirigiu-se ao quintal. Posicionou-se sob a mangueira, olhou os galhos podados com simetria, subiu na banqueta, ajeitou meticulosamente em torno do pescoço o laço bem arranjado e se lançou no vazio.

À sombra das marquises

             Cristina sempre sentiu atração por mendigos. Nada físico, mas um interesse irresistível pelo universo opaco dos despossuídos. Gosta de com eles trocar ideias, de escarafunchar as desditas de cada qual. Os arredios, aqueles metidos em suas conchas, acaba por conquistá-los, por penetrar em suas couraças. São esses desvendamentos sempre os mais prazerosos. Não se preocupa em levar aos seus interlocutores rotos sopas fumegantes nas madrugadas frias, tampouco em arrumar-lhes o que vestir. Lá no fundo, no mais recôndito dos seus escondidos, abriga-se um pecado inconfessável. Na verdade, Cristina quer os alijados no limbo. Quanto mais miseráveis, mais a atraem.

             Em troca dessa obsessão, deixou a desejar como esposa e mulher. Viu o ex-marido, na tentativa de conquistá-la, abandonar o mundo dos negócios, ganhar a sombra das marquises. Ainda assim, o pobre jamais conseguiu alinhar-se entre os favoritos. Afinal, sobre ele Cristina sabe tudo.

No mundo da Lua

             Tudo teve início quando Marciano calçou sapatos de cromo alemão nos pés da mesa da sala de jantar. Logo a seguir, afirmou que as barrigas de sua perna apresentavam sintomas de gravidez. Além disso, pretendeu cravar estrelas no céu da boca. À recusa do odontólogo quanto ao atendimento do inusitado desejo, reagiu com um sorriso amarelo, mas não se deixou abater: mal deixou o consultório, adquiriu pincel e tinta vermelha.

             Dia desses, Marciano ficou horas no milharal a passar xampu nos cabelos das espigas. Na véspera, lamentara-se por não haver conseguido mordiscar as maçãs do próprio rosto. De outra feita, comprou lindas pulseiras para os braços das cadeiras. A um hábil artesão, a fim de ornar as cabeças dos alfinetes, encomendou pequeníssimos chapéus. Quando desejou implantar silicone nos peitos dos pés, os familiares resolveram agir, de modo a colocá-lo em órbita.

             Faz uma semana, Marciano obteve alta da clínica de repouso na qual esteve internado. Anda cabreiro, com a pulga atrás da orelha. Guarda por isso um segredo: vem amestrando a bichinha, mas ninguém há de saber.

Trevo de quatro folhas

             Certo dia, Leandro intrometeu-se nas vidas de Aurélia e Valquíria, amigas inseparáveis. Quando se deu conta, namorava as duas, ignorantes desse pormenor. De Aurélia, Leandro sugava a meiguice. Valquíria, por sua vez, alimentava-o com a firmeza que lhe era peculiar. Algum tempo, decorrido tudo veio à tona. Aurélia desmanchou-se em lágrimas. Valquíria exigiu definição. Vai daí, Leandro uniu-se a Fernanda, ao mesmo tempo suave e resoluta.


Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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