Abstinência Sexual no Cinema – Parte 2

9 min. leitura

Antes mesmo de apontar um defensivo dedo indicador em direção à essas palavras, peço que, além de ler cada frase, enxergue também a minha imunda —— podre, inconsistente, capenga… —— intenção até o final desse texto. Não é nada demais afinal. É só sexo. Especificamente, uma baita orgia do telespectador que se deleita com pré-conceitos que juram em ser apelativos, conservadorismo dominante e uma sacana ignorância, acima de tudo. Claro que em toda essa suada bagunça, alguém ficaria de fora. Ser voyeur nunca foi tão irritante para essa criatura. Ela, a desnuda arte. Corpos explicitamente embaraçados nos mais variados sentimentos —— não necessariamente românticos —— esperando, talvez, uma certa representação desse ápice.

Pode ser uma mania desesperadora de dar significados a tantas outras coisas, mas o fato de que um momento epifânico é tratado hoje, em filmes e séries, como algo de quinta categoria, me soa deprimente. Não sou uma entendedora do mundo cinematográfico, tão pouco fiscal de sexo, ——temo desse último, até —— mas é inegável não levantar essa questão. Cenas de intimidade eclodiram descaradamente em tempos de que um tabu parasitava pessoas, usando a arte do prazer como afronta à essa mecânica vergonhosa de um tradicionalismo pútrido e ultrapassado; mas como tal fulgor teria ‘caído por terra’ atualmente, quando esse mesmo tabu se encontra – só um pouquinho… – fragilizado? Por que essa urgência artística se desanimou ao longo dessa caminhada, quando teria tanto o que oferecer?

É importante pontuar também que há uma diferença significativa entre cenas completamente desnecessárias de sexo —— e sexo, sexo e SEXO… —— apenas para preencher minutos a mais na obra produzida, com os que possuem a real intenção de uma representação agridoce do ato, sem tantas performances envolvidas entre personagens. Mas nenhum dos dois entram nessa pauta. O questionamento vai diretamente aos que realmente visam na elaboração, mas se deixam cair em um conformismo tão vazio. Pode ser o possível medo de atender aos negativos achismos daqueles que os assistem, nos quais referem qualquer atrito pele com pele a uma gritante apelação.

Imaginemos por exemplo uma sala do primeiro ano do ensino médio em uma aula de biologia, onde um estudante — garoto, na maioria das vezes — dispara para o colega ”Ei, fulano! Bota na página 115! MUAHÁHÁ! Peitos’‘. Para mim, essa é exatamente a energia expelida ao redor desse meio desnudo e vulnerável, e de um ato libidinoso totalmente, severamente, sem vergonha. É como se estivéssemos nessa grande sala de aula, amontoados por pessoas imaturas que sequer se esforçam em enxergar tal intimidade com outros olhos.

Tamanho escárnio, os corajosos insinuam. Tamanha perda, a arte sofre.

Eis que entra a sagaz diferença entre o que criar através da nudez e da troca do toque sexual, indo além de estar ali apenas por razões eróticas estilísticas —— um filme com teor violento adiciona a nudez para explicitar uma realidade sombria e (de certa forma), livre sem censura; uma comédia romântica irá se esbaldar de cenas água com açúcar com pouca nudez, mas repletas de risos exagerados durante o ato.

Série Outlander, de Diana Gabaldon

Na série de drama Outlander, que carrega uma das minhas representações preferidas desse deleite do prazer passageiro, costura singelamente uma intimidade satisfatória. Claire, a personagem principal, é transportada através do tempo de forma misteriosa, se deparando em uma Escócia no ano de 1743 e completamente apaixonada pelo jovem guerreiro Jamie Fraser. Uma cena importante de ser citada, seria o reencontro do casal após vinte anos separados pela volta da personagem ao presente, ilustrando o momento íntimo que tanto aguardavam. São quase dez minutos de cena, o que agradaria pouquíssimas pessoas por uma mera falta de paciência, mas que, no fim, compreende-se exatamente a intenção de ter sido longa ——afinal, se eles esperaram por vinte anos, o que seriam uns minutinhos para nós?

Cada ação é bem interessante de se observar. Apesar da urgência que clama em seus semblantes enxurrados de prazer, todo ato de arrancar de peças de roupas é feito lentamente, não rompendo o contato visual um com o outro. É até cômico quando Jamie chega finalmente no espartilho, se assustando rapidamente ao não achar nenhum laço para desatar, mas sim, um zíper improvisado por Claire no presente, antes de viajar no tempo ao encontro de seu amado. São pequenos detalhes, porém, se notados, fazem toda a diferença.

Filme Anomalisa, de Charlie Kaufman

Ou na que é talvez, discutivelmente, a melhor, mais pura e realista cena de sexo já posta em telas, e vindo nada menos do que de uma animação, Anomalisa (2015) de Charlie Kaufman, em meio a outra de suas obras de alto teor existencialista sobre identidade, unicidade e em seu mais profundo cerne, amor verdadeiro — desenrola-se finalmente um encontro que faz o personagem de David sair do comodismo que cerca sua vida e encontra algo com voz, fisionomia e personalidades diferentes e que o atraem na personagem de Lisa. E na sua rápida paixão que se instala que os leva à troca sexual, onde cada traço dessa cena, cada pequeno beijo, o diálogo tímido humorado que ambos trocam, até a forma como eles se posicionam e se movem durante todo o ato, em um filme live-action com atores normais seria algo simplesmente banal, mas com os personagens animados, a pureza, a sensibilidade, o sensual que sai do ato tão realisticamente atuado, é capaz de mostrar o potencial artístico e humano que essa cena é capaz de alcançar e atingir aqueles que o assistem.

Qual é, meus amigos. Não é somente um ritual de acasalamento. Nos confins de corpos embaraçados, há toda uma desenvoltura que paira acima dessa devassa cerimônia. Permitir-se estar nu e compartilhar do mesmo com o outro, diz muito dos personagens envolvidos na trama. Não é somente ilustrar um sexo apaixonado ou casual, à dois, três… [!] mas abusar da dosagem de uma liberdade genuína. Um festim de desencarne de almas. Nada mais é que uma narrativa respondendo à vida real.

Mitigar certas carências pode-se considerar como um grande ato heróico, principalmente à defesa da liberdade artística. Isso não se encaixa em nenhum assunto delicado quando, na verdade, é apenas o vislumbre de uma arte inquieta —— sanada por esse extravagante mundo cinematográfico, por exemplo.

A grosso modo? Falho em redigir esse questionamento de gosto duvidável, mas não me calo perante essa indigesta reclamação da vez.

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Às vezes tenho a breve sensação de soar raivosa nessas declarações aleatórias, mas persistentes. Culpo meu amigo, Raphael Klopper, que trouxe esse debate à tona, abrindo portas à inúmeros e inomináveis pensamentos e ideias que pipocaram na minha cabeça pelo resto da semana, e que colaborou fortemente na criação do monstro acima. Devo agradecer, inclusive, a essa incrível parceria que tramamos e que DEVE se repetir mais vezes.

Aos que caíram de paraquedas nesse texto, indico aqui que corram para a primeira parte dele, que se encontra na coluna ”Cultura Recomenda” do Raphael.

Ana Luiza Portella – estudante de jornalismo

Raphael Klopper – estudante de jornalismo

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