A compaixão e o não julgamento: caminhos para a paz

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Temática sempre atual, a guerra é palco de inúmeras discussões, assertivas ou não, mas sempre acaloradas, a respeito do destino da humanidade. Ainda que este texto se pretenda a uma apologia à paz, é impossível falar dela sem se referir a seu oposto. As dicotomias bem e mal, amor e ódio, guerra e paz perpassam gerações. Desde sempre os pares opostos e complementares são condições da nossa existência nos estágios de desenvolvimento em        que nos encontramos.

Muitas são as questões envolvidas nessa reflexão, desde o contexto psicológico da espécie humana ao econômico, sociopolítico e cultural. Diversos foram os autores que se debruçaram sobre esse tema com maior ou menor grau de relevância. Segundo, Edward McNall Burns, escritor da História da Civilização Ocidental, a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, teria falhado na sua responsabilidade primária de manutenção da paz e da segurança internacionais − haja vista a atual guerra instalada na Ucrânia em que até agora nada de definitivo foi feito para sua finalização, acrescento eu. E concordo com ele, em parte, mas não tenho conhecimento político o suficiente para argumentar mais fortemente sobre. A “Agenda para a Paz” que traria novos domínios de intervenção para a “manutenção da paz”, parece não estar sendo tão bem conduzida, de fato. Entendo o quanto é difícil para governantes vivendo situações de conflito decidirem sobre qual atitude tomar, mas sei também o quanto a população imersa nesse caldeirão de horrores está sofrendo.

Penso que uma das discussões mais interessantes sobre este assunto se deu entre Freud e Einstein em sua troca de correspondências, datada de 1932, numa iniciativa da Comissão Permanente de Letras e Artes, da Liga das Nações (órgão que viria a ser substituído pela Organização das Nações unidas – ONU, em 1945). O tema em debate era se existia alguma maneira de libertar a humanidade da ameaça de guerra. Apesar de terem pontos de vistas diversos sobre essa questão, a ideia era de que chegassem talvez a um consenso que contemplasse uma concórdia entre ambos, algo complexo até mesmo para duas inteligências daquele porte. Einsten, logo em sua primeira carta, já perguntava se haveria um modo de não se fazer guerra, e, depois, complementava seu questionamento sugerindo a possibilidade de que, talvez, pudesse ser instituído por meio de um acordo internacional, um órgão legislativo e judiciário, que pudesse arbitrar conflitos surgidos nesse âmbito.

Entretanto, apesar de uma discussão profícua −, o leitor pode encontrar algumas cartas no site da Unesco, em espanhol, e lê-las na integra −, meu fio condutor não seguirá no sentido de uma discussão política, mas se pautará na reflexão de como nós, reles mortais, podemos atuar, fazendo valer nossa voz, a fim de trazer alguma luz sobre esse assunto. Se fossemos tecer uma crítica política, ela seria desarrazoada por falta de argumentos mais específicos, portanto caminhamos com Freud no sentido de ter razão quando respondia a Einstein que algumas verdades eram “difíceis de engolir”, principalmente, e desmentindo Rousseau − se pudermos trazê-lo aqui − de que o homem não nasceu de todo bom, mas teria “impulsos violentos”. Por vezes parece até que o ser humano só acredita mesmo que se pode chegar à “paz” fazendo guerra.

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Do micro para o macro

Não discordamos totalmente de Rousseau, mas a perspectiva de uma “fraternidade coletiva”, parece, a mim, algo um tanto idealizado. Concordo que deveríamos buscar uma unanimidade no que tange à união de pessoas com os mesmos objetivos, mas entendo ser relevante compreender que as mentalidades divergem de muitas formas, e, talvez, isso fosse humanamente impossível.

Estando à vontade para falar do que sabia, pois Einstein indicava que gostaria de obter explicações psicologicamente eficazes e não otimistas, Freud disse a Einstein que “no aspecto psicológico, dois dos fenômenos mais importantes da cultura são, em primeiro lugar, um fortalecimento do intelecto, que tende a dominar nossa vida instintiva, e, em segundo lugar, uma introversão do impulso agressivo, com todos os seus consequentes benefícios e riscos.” Mas como pode se dar a introversão do impulso agressivo, já que ele é impulso e como tal se encontraria no campo da pulsão (das emoções, dos afetos)? Será que a cultura daria conta de mover intelectualmente o homem na direção de uma conscientização, já que a maioria absoluta de nossos atos têm base no inconsciente?

É preciso pensar. E interessante ainda é perceber que nos momentos mais críticos para a raça humana, como o atual em que pairam esses sentimentos bélicos e de oposições no ar, é que se torna ainda mais necessário falar de paz. Freud acreditava que o homem trazia dentro de si um sentimento de ódio e desejo de destruição, que opera de várias formas e em diversas circunstâncias, gerando assim as guerras civis, a intolerância religiosa. Ódio ao que é diferente do que se conhece ou se aceita. Haja vista a intolerância sobre o desejo do outro, que temos presenciado no Brasil, desde as eleições de 2018 às de 2022. Porém, tendo assegurado a Freud que poderia se expressar, Einstein deixou-o livre para manifestar que um possível caminho para evitar a guerra passaria por manter internalizada a tal energia destrutiva e dar espaço ao impulso associado a Eros.

Portanto, Freud concluiu com ambivalência e muito ceticismo, em relação à eliminação dos instintos violentos e da guerra, tendo observado “que não há chance de que possamos suprimir as tendências agressivas da humanidade”, apesar de termos certa disposição psíquica que nos impulsiona para o desenvolvimento da cultura, o que poderia ajudar. A arte, por exemplo, seria algo nesse sentido. O fato é que talvez ele tenha razão. Mas então qual poderia ser a saída para se evitar tamanha brutalidade nos homens, e entre eles, a ponto de estarmos sempre na eminência de conflitos e ódios, geradores de guerras entre pessoas e até mesmo nações?

Tanto Freud com Einstein concordaram, no decorrer do diálogo, que é preciso um órgão “regulador” de ímpetos. Porém, será que a força da lei traria mudanças internas a ponto de não haver mais perigos? Penso que não se possa pôr fim ao instinto bélico com medidas de coerção, de fora para dentro, nem com a instauração de um poder superior com funções de regulação e mitigação dos conflitos resultantes das diferenças irredutíveis entre povos e indivíduos. Penso, e só penso, que uma das respostas possíveis, se quisermos usar as palavras freudianas, como “introversão do impulso agressivo” para transformar o modo de pensar e agir humanos, isso só pode se dar por meio da conscientização para o aprendizado do respeito e do amor, aqui em consonância àquele Eros. Talvez, se Freud tivesse tido mais tempo, chegasse a conclusões semelhantes ao crédulo Einstein que disse estar convencido de que aquele seria “capaz de sugerir métodos educativos” para alcançar uma possível transformação dos homens no que diz respeito a esses impulsos.

Como educadora e professora que sempre fui, antes de psicanalista, acredito na força de uma ação socioeducativa voltada para o Amor e a compaixão, que também podem ser aprendidos, a fim de que se possa capitular individualmente para esse tipo de mentalidade. A partir da subjetividade de cada um, poderíamos, talvez, ir ao encontro da coletividade, da sociedade, pois a transformação só acontece de dentro para fora. A possibilidade de se tornar consciente por meio de práticas psicoterapeutas, já que somos seres ainda movidos pelo “inconsciente”, poderia ajudar. A prática educacional não só em casa, mas também nas escolas, sairia do espaço de formadora de indivíduos para o mercado de trabalho, para atingir o ser, a pessoa, na formação de seu caráter e de suas emoções mais humanizadas, com uma ética que incluiria o outro. O processo educacional seria de maior acolhimento e menor sofrimento, para a subjetividade da pessoa vir à tona integrada, e ela ser capaz de vislumbrar uma calmaria e segurança internas, propiciadoras de conforto e paz. 

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Mas afinal como trazer à baila a paz?

A paz provém de um coração abrandado e flexível, liberto de coerções e compassivo. A paz provém da adoção de um estilo de vida que não acate a violência em qualquer de suas manifestações. Não sou budista, mas creio que a espiritualidade, sem qualquer rótulo ou nome, é o que deve nortear nossa busca pela paz. Precisamos não vivenciar a hipocrisia dos que se consideram com qualquer forma de Deus no coração, mas que carregam nos lábios críticas e vingança, ódio e desdém, e considerar a sinceridade dos que praticam o verdadeiro “religamento” consigo próprio e com o outro, a começar pelo próximo que está ao nosso lado, na família, em casa, e no trabalho.

Segundo algumas filosofias, não são relevantes as condições externas, porque a paz surge como um resultado direto de tudo o que ocorreu no passado, não somente as ações que realizamos ontem e hoje, mas também aquelas que atuaram sobre nós. Psiquicamente falando, a paz pode surgir também da elaboração de nossa capacidade afetivo-emocional, desenvolvimento da maturidade para lidar com nossas frustrações, do que nos mobiliza internamente, de nossa necessidade de mudar as coisas que podem ser mudadas, em nós, e consequentemente no mundo, e do reconhecimento do curso da história e do que não pode ser mudado. Para a psicanálise, como nosso inconsciente não faz a separação entre passado, presente e futuro, ele está o tempo todo vivendo no único momento possível: o instante presente. E o instante presente é a realidade nua e crua. E é nele que podemos estar integrados para sentir finalmente a paz em nós, que é um desapegar-se dos conceitos e preconceitos,  dos pensamentos de que sou esse corpo ou esse nome, ou tenho essa ou aquela nacionalidade. Sem separação não há conflito, só havendo o momento presente onde Sou, e a paz habita ali.

Se em algum momento estamos em paz, nos sentimos em paz,  deve-se crer que isso se dê pela descoberta de que, se há uma “batalha boa” de se travar essa é com nosso maior “inimigo”, nós mesmos. Isso pode se dar também pelas ações compassivas que realizamos anteriormente e continuamos a realizar com persistência. Ser compassivo é ter a compaixão como modo de funcionamento. Ver o outro como um ser que passa por sofrimentos diferentes, mas muito próximos dos nossos, não só por nossa condição biológica, como também psíquica, que inclui o aspecto emocional e afetivo, nossa condição humana. Isso pode gerar um sentimento de identificação e consequentemente solidariedade. Entender que somos humanos e imperfeitos nos ajuda a perceber a falha como uma preparação para um “falhar menos”, repetir menos essas falhas, e compreender que todos estamos num caminho semelhante em termos psíquicos e na escala evolutiva, que se dá paulatinamente. Entender que todos falhamos, sem exceção, é importante. Portanto, a compaixão e o não julgamento são imperativos para se viver em paz. Esmorecer é natural para todo ser humano, mas dando as mãos ao que há de mais divino em nós, podemos conquistar forças extras para seguir sem tantos conflitos.


Janice Mansur é escritora, poeta premiada, professora, revisora de tradução,
criadora de conteúdo e psicanalista  (atendendo online).
Contemplada no Top of Mind Awards Internacional UK 2022,
na categoria Escritora Destaque do ano. 

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