Ele morava próximo à queda d’água. Do alto do penhasco se via o mar e à margem do mosteiro um lago onde volta e meia era refletida sua imagem não narcísica. Passeava pelos arredores todas as manhãs. O sino dos ventos preso à copa de uma frondosa estupenda árvore embalava seus mais recônditos sonhos e lembranças.
O som suave como uma flauta adentrava seu ouvido sensível de rapaz com estudos e dotes musicais. Ele sabia que sem o vento a melodia das notas não se espalharia pelo ar, tocando os céus. O vento libertava os sons para seguirem caminho. Era feliz àquele dia, seria feliz para sempre porque decidira seu trajeto agora.
Tinha ido para lá com a idade do ímpeto. Como todo bom romântico cria na Força Maior, mas também no amor mundano. Fugira da imagem de Aldora quando ela ia aos 17, carnes frescas, boa aparência, menina ainda…
Trazia consigo a noção do martírio católico. Algumas vezes o mestre budista, amigo seu, ficava aterrorizado em ver seus flancos em carne viva. Não sabia o que fazer nessas horas e dizia-lhe que meditasse mais e lesse para entender o que se passara.
Com o tempo, Caio passou a perceber que o tempo não volta, é como o vento que segue em qualquer direção.
Aldora jogava seus cabelos ao lado e tecia uma trança para ir à Igreja, onde se viram pela primeira vez. Como coroinha, fora o recato o que o atraíra mais para ela. Assim, sucederam-se encontros na quermesse, nos casamentos da comunidade, idas a sua casa com o pároco para conversas de negócios com seu pai. E viam-se muito além do devido.
Aldora refletia o ardor da inteligência e determinação cega. Impulsos da juventude escorriam-lhe pelos ombros que se remexiam fagueiros. Por seu perfume vinha-lhe a mais preciosa cena de romance antigo, à moda Lollobrigida. Aproximava-se dela com o respeito de um amigo, entretanto em seus pensamentos não sabia dizer o que sentia. Aldora era o sonho de rapaz galante, de quando ficava sozinho e suplicava por afeto.
Crescera um pouco mais, seus olhos transpiravam o furor de suas necessidades de moça feita. Suas mãos quando se tocavam faziam aves revoarem de onde estivessem pousadas. Era uma cachoeira de sentimentos mistos e vagos a ocupar as palavras não
ditas e caladas. Trocavam delicadezas e continuavam a ver-se constantemente.
Um dia, ele desistiu do escolhido para ele e disse ao pai num relance “Não quero mais servir a Jesus”. Credo!, exclamou a mãe de imediato. O pai entre aturdido e pesaroso por ver uma promissora carreira eclesiástica desmoronando, correu ao Bispo da cidade. Este reuniu-se como o padre e todos interessados na permanência do rapaz no celibato, afinal ele era filho de um eminente devoto.
Por fim, toda história de sua paixão por Aldora acabou por ser descoberta, já que todos se empenharam em investigar o motivo da desistência do rapaz.
Então, um dia, sua mãe pegou seus olhos resvalando na barra da saia da moça, brilhando, enfeitiçados por sua beleza. Comentou com a mãe dela e fizeram um conluio para decifrar a “novela”, como reverberava seu pai. Ao fim de sete dias, como se fossem deuses, proferiram a sentença ambas famílias: deveriam ser afastados. Ela iria estudar em Londres, em colégios de moças, claro! Ele iria para um seminário longínquo em outro país, isso garantiria o sossego de todos.
Aldora quando soube da notícia, transtornara-se. Como poderiam se meter assim em sua vida? E na vida de Caio? O rapaz não poderia escolher casar-se? Por acaso, deixaria de amar a Deus por isso? Não lhe deram ouvido.
Dois dias depois embarcavam Caio para Roma.
Aldora teve crises, desmaios, vômitos. Parecia que seu corpo todo rejeitava a decisão. À noite, todo seu corpo queimava talvez relembrando dos tempos da fogueira em que os sonhos também eram incendiados e os desejos trancados nos calabouços. Pela manhã, jazia estática com seu sangue espalhado pelos lençóis brancos da espaçosa cama.
Seus familiares enterraram-na como se fora tuberculose já em fase terminal, mas ninguém sabia. E pompa, e missa, e tudo a que tinha direito, a pobre.
A família de Caio teve de explicar-se a ele que há meses insistira para saber de Aldora. “É filho, foi assim, infelizmente…”, contou-lhe a mãe, entre sem saber o que dizer e culpada.
No mês seguinte, num domingo, receberam uma ligação do seminário. Caio fugira, abandonara tudo no último dia da semana sem dar a menor satisfação. Encontraram sobre sua cama um pedaço de papel escrito: sou como o vento.
***
Este texto faz parte de meu novo livro Contos de Bastidores, lançado pela Amazon. Nele falo do cotidiano, de laços afetivos, da vida que percorre nossas veias, do assombro que habita nossos corações. Como estamos nos aproximando do Natal, gostaria de pedir um único presente a você que me acompanha, que gosta do que escrevo e a quem, por acaso, meus textos inspire. Que você possa compartilhar o que lê nessa coluna para que outras pessoas possam entrar em contato com algo que talvez nunca tenham pensado.
Relendo este texto me lembro de que ele saiu de mim como se alguém o tivesse inspirado, como dizem os grandes escritores, “de uma sentada só”, pois creio de fato que todos de certo modo somos instrumentos de algo maior. Que nós possamos neste Natal, usufruir de boas leituras para repensar nossas vidas e nossas práticas.
A literatura pode nos fazer percorrer caminhos nunca antes trilhados, pois um(a) autor(a) ou outro(a) o fez. E talvez, quem sabe, pelas histórias lidas possamos entender uma pouco mais as histórias vividas, entender o que eu penso, o outro pensa e respeitá-lo como um ser livre para suas escolhas, erradas ou não (também falo isso para mim), as escolhas possíveis ou não, as que ele pode realizar naquele momento e dar conta delas, ou não. Há escolhas que não são feitas, aparecem para nós ou nos são dadas, e a Vida é assim. É necessário simplesmente estar pronto para assumir as consequências e reconhecê-las como e quando acontecem, entendendo que só posso fazer diferente quanto mais maturidade eu desenvolver. É preciso fazer as pazes comigo, entendendo que nem sempre minhas escolhas me levam a caminhos escolhidos, e assim fazer as pazes também com minha falta de controle.
Você já parou para pensar que não controla a vida?
Janice Mansur é escritora, professora, revisora de tradução,
criadora de conteúdo e psicoterapeuta (atendendo online).
Canal do Youtube: BETTER & Happier Instagram: @janice_mansur