Virada do ano: como suportar o que não rola?

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Fonte: Freepik

Somos pessoas movidas pelo desejo, que está intimamente ligado a nossas fantasias infantis e nossas lembranças de satisfação, satisfação das necessidades mais fundamentais até como ser alimentado e agasalhado.  Você não se lembra nitidamente de lá, mas aquele lugar que você ocupou no colo de alguém, quando foi amado, ou não, faz toda diferença na sua vida de hoje. A pessoa que não teve o mínimo naquele período em que somos totalmente indefesos, aquele alguém suficientemente bom que estivesse a nosso lado, sofre hoje mais do que deveria.

Na virada do ano, algumas pessoas têm a ideia de que o ano seguinte será totalmente diferente do anterior, que haverá uma ruptura no que havia de ruim e pronto, a partir de primeiro de janeiro “tudo vai ser melhor”. Minha vida que era vazia, vai ser repleta de coisas a fazer, de repente. Vou ficar rico, vou conhecer alguém que vai realizar todos os meus sonhos e me fazer feliz. Entretanto,  embora não haja passe de mágica capaz de resolver todos os nossos problemas, é verdade que o fim de ano traz o afloramento do desejo. Como assim o desejo? Ora, os desejos de “virada” de ano são aqueles que ainda mantêm viva a chama da esperança de dias melhores no ano seguinte, e para muitos são aqueles relacionados à nossa satisfação primária.

Algumas pessoas, como falei mais acima, não têm nada que as deixe mais confortáveis e acolhidas e, por isso, a virada é mais uma oportunidade de extravasar, beber, fazer loucuras. Outras, menos atingidas pelo desamor, apelam para o sobrenatural ou místico, assoprando canela no ar da casa, usando calcinha amarela para atrair grana, peças de roupa rosa ou vermelha para atrair o amor, dão pulinhos nas ondas da praia para Iemanjá, fazem retiros espirituais, e por aí vai. Outras fazem as famosas listas de promessas intermináveis nas quais estão incluídos desde um futuro marido ou namorada até as velhas fórmulas de emagrecimento.

É louvável que tenhamos vontades de fazer ou ter coisas que ainda não fazemos ou temos, mas será que o cenário atual não seria aquele mais para agradecer pelo que já temos ou conseguimos fazer do que para pedir? A gratidão vazia, como se brinca até “gratiluz”, fica sem sentido quando pensamos no conjunto da sociedade. Enquanto estamos fazendo pedidos do que pensamos necessitar a Papai Noel ou Deus, há alguns que oram por um pedaço de pão somente ou estão em leitos de hospitais com sua saúde se deteriorando. Nesses casos, basta que olhemos para nós para agradecer de verdade.

Há ainda aquelas pessoas que se planejam tanto que não há nem espaço para respirar. Conheci uma moça que disse numa live dela, “minha vida estava toda planejada até 2020, daí chegou o Covid-19 e fiquei travada, porque tudo dependia de ir à rua, fazer viagens, para o curso que tinha montado”. O que podemos ver aqui é que o planejamento detalhado demais de nossa vida pode ser um elemento estressante a mais num mundo tão “líquido” como o que hoje vivemos. Pensamos e agimos como se pudéssemos controlar a nós mesmos e o universo inteiro, e que, nesse controle todo, a virada do ano é um dos momentos em que posso pôr no papel o que desejo mudar em mim “ali na frente” e “vou fazê-lo, porque eu posso tudo”. Será?

E pensando melhor, não é o ano que muda alguma coisa em você, é você que mudando pode mudar o ano. Você pode começar agora, hoje, não importa o dia que você estiver lendo isso. Não sei por que as pessoas acreditam que apenas quando chega o fim de um ano que é tempo de renovar as promessas não cumpridas ou nomear novos desejos. Muitas coisas que pedimos na verdade não vêm quando queremos, muito menos no fim de uma ano e começo de outro. E, muitas  vezes, quando não pedimos nada,  apenas estamos em ação, vivendo e sendo nós mesmos, é que as coisas acontecem. Um dos anos mais interessantes que vivi, foi quando não tinha nada para fazer, nem ninguém ao meu lado e passei de um ano ao outro em oração (apesar de não ser nenhuma beata nem estar em retiro). Aquilo me fortaleceu e me trouxe a experiência inédita de poder contar comigo mesma num momento tão simbólico de “virada”.

O que penso que pode ser interessante em um novo ano para “suportar o que não rola” é refletir.

Será que você quer o que deseja? Nem sempre queremos o que desejamos, pois não queremos pagar o preço da surpresa, do que virá sem estarmos preparados, ou o que virá “a reboque”. Querer o que se deseja implica o risco da aposta. E toda decisão é um tiro no escuro, você não sabe se vai acertar ou se mirou em algo que “não era bem isso”.  Algumas pessoas eternamente insatisfeitas com o que obtém, desejam sempre uma outra coisa também. Será que estamos preparados para receber o que tanto achamos que desejamos? Ou desejamos o impossível de ser alcançado?

Se você está vivendo algo assim neste fim de ano, é hora de começar a pensar mais no que você de fato deseja e se isso que você tanto quer é de verdade o que seria bom de receber. Mesmo porque não é só quando um ano vira outro que algo acontece de diferente na vida da gente. O tempo não olha as datas do calendário, nosso ser não deixa de viver no passado porque se vira uma página escrita “dezembro” na folhinha, o nosso inconsciente não se torna presente só porque fazemos meditação. Somos um misto de passado, presente e futuro, e quando nos apropriamos de nós, passando a reconhecer as nossas necessidades, o que fazemos com nossa própria vida, é que podemos estar menos fadados ao insucesso e à insatisfação.

Mas se nós não conseguimos ainda realizar o que desejamos ou queremos, talvez esteja na hora de pensar se “aquilo” é de fato para mim.  Em vez de correr tanto atrás de algo que ainda não consegui, que tal aproveitar das oportunidades que a vida nos dá ou traz?  Bom pensar que, caso não consiga de fato o que você pensa querer, ou com o que não quer mais ou que não veio para você, talvez, possa ser interessante desapegar do desejo fantasioso do sonho e mergulhar na realidade que surge como algo indesejado mesmo, transformando-a dentro do possível, numa realidade melhor, mais possível de se viver e suportar.

Ah, e, por que não, lembrar mais de agradecer?

Que neste ano possamos pensar mais no que de fato queremos e o que de fato precisamos.

Booora?


Janice Mansur é escritora, poeta, professora, revisora de tradução,
criadora de conteúdo e psicanalista  (atendendo online).
Contemplada no Top of Mind Awards Internacional UK 2022,
na categoria Escritora Destaque do ano. 

Canal do YouTube: BETTER & Happier Instagram: @janice_mansur

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