Todos nós somos sujeitos às afeições. As relações afetivas fazem parte da vida humana e da animal, guardadas as devidas proporções. Animais também se beijam, a sua moda, e se abraçam e constroem laços. Os animais demonstram seu carinho por nós também de diversas formas. Dia desses mesmo, postei no meu Instagram um vídeo de um gatinho que ficava tentando proteger uma criança, evitando que ela não se aproximasse das grades de uma varanda no alto de um prédio. Como ele poderia ter noção de que aquilo seria perigoso para a criança? Afeto. E mais ainda: empatia e compaixão.
Mas neste texto, em virtude do dia dos namorados, no Brasil, vamos falar especificamente sobre responsabilidade. Sim, responsabilidade afetiva. Nossa, mas que caretice! − me dirão alguns. Tudo bem, but se você seguir adiante verá que não se trata de uma apologia. Na verdade, o que me passou pela cabeça foi bem o contrário. Você se lembra da famosa frase do livro O pequeno príncipe? Até eu, quando era adolescente, usei-a para cobrar afeto de um ex-namorado. Chamei sua atenção jogando na mesa a carta da vez, dizendo: “Tu te tornas eternamente responsável por tudo o que tu cativas”, e na época achei que estava abafando. Ah, coitada!
Aonde pode chegar essa história?
Pessoas, assim como coisas, são objetos. Oi? Sim, objetos de amor, claro! Com meus novos estudos pelo campo da alma, isso ficou muito claro para mim, pois entendo que nosso primeiro “objeto” de amor é o outro: a mãe, o pai, e assim sucessivamente. Portanto, comecei a refletir sobre essa frase e penso que, talvez, a questão da responsabilidade não seja assim tão evidente.
A frase, título desse artigo, foi traduzida do francês “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé.”, e veio para o inglês para depois chegar ao português. Então, temos em segundo lugar: “You become responsible, forever, for what you have tamed.”, e em terceiro: “Tu te tornas eternamente responsável por tudo do que tu cativas”, que foi como chegou a nós. Do francês para o inglês, a tradução seguiu semanticamente mais favorável ao significado do verbo na língua francesa, mas quando veio para a língua portuguesa a coisa descambou. Porém de fato, talvez não exista palavra melhor para falar do cuidado do pequeno príncipe com a rosa do que cativar, embora possamos percorrer diversos caminhos semânticos para a palavra.
Assim, realizei uma pesquisa etimológica e semântica relacionada a essa palavra e às próximas, e vou expor para você aqui só, neste parágrafo, brevemente, o que se findou no meu raciocínio. Isso não é uma análise literária, muito menos filosófica, que fique claro. Apprivoisé provém de “domesticar, domar um animal” ou “ação de tomar posse, prender, capturar”, que por extensão poderia ser “escravizar, dominar”, mas que também pode mais suavemente ser entendido por “tornar caseiro, familiar, manter privado”, ou ainda “seduzir, fascinar, encantar”. Isso já é o suficiente para que possamos pensar sobre o investimento de tempo do pequeno príncipe ao cuidar da rosa, da sua rosa vermelha, protegê-la de lagartas, entre outras coisas. Esses elementos são interessantes para essa nossa pequena reflexão, acerca dos relacionamentos amorosos, no dia de hoje.
Mas, e daí? Onde entra a questão da responsabilidade afetiva?
Numa relação amorosa, o ser amado é “seduzido” pelo outro, cuidado, tornado um elemento familiar, mantido em privado, e muitas vezes protegido numa redoma de vidro, como é o caso da rosa, não por acaso vermelha – cor da paixão − na história de Antoine de Saint-Exupéry. Nesse sentido, entendemos que ela é de fato protegida por ele, e é cativada por ele como nos traz a tradução do livro. Você me diria que nem sempre ocorre isso tudo aí numa relação, mas a nós já basta saber sobre este elemento básico de aproximação entre dois seres: o encantamento, a fascinação, enfim, a sedução.
Se eu seduzo o outro, mas por ele sou seduzido, onde estaria minha responsabilidade sobre este ato, se ele é um caminho de mão dupla? Por que seria eu responsável por ter cativado o outro? Não seria. Essa é a questão. Sempre acreditamos que não somos responsáveis pelo que geramos no outro, afinal ele é bem grandinho para saber o que sente. Mas… isso acontece assim?
Sentir não é tão simples assim. Nada do se relaciona ao afeto é tão descomplicado.
Vamos aprofundar um pouquinho para entender de onde pode surgir a complicação?
Quando nos apaixonamos por alguém estabelecemos um vínculo que só será transformado em amor (ou não) com o tempo − este NÃO é que podemos relacionar ao “peso” da responsabilidade, da qual falaremos mais tarde. No princípio, nesse auge da paixão, do encantamento, ninguém sabe aonde a coisa vai chegar, qual será o rumo da história, portanto até aqui não há nada por que se responsabilizar.
Aqui, num artigo, torna-se impossível explicar todo o processo pelo qual a paixão pode acontecer. Mas podemos adiantar aqui que conforme Freud (2014) e outros autores nos relatam, repetimos ou reproduzimos padrões de comportamento que tivemos desde bebê: de quando nos apaixonamos pela primeira vez por nossa mãe. Hoje, você pode até não se dar bem com ela, não falar ou não gostar dela, mas e quando você era bebê? Pensa o que é o cheiro de um leitinho morno para quem está morrendo de fome, e nem sabe o que significa aquela dor no estômago. Satisfação das necessidades básicas, é tudo para nossa sobrevivência, não? Pensa o que era um colinho quente e aconchegante para quem tem uma pequena porção de corpinho para ser aquecido. A mãe é fonte de meus desejos: eu penso num leitinho, ele aparece, eu penso no quentinho, vem um colinho… uau, isso é mágico! É isso! Paixão à primeira vista.
O que o outro oferece a nós, quando nos apaixonamos “de cara”, é o aconchego, o colo morno, o encontro de “almas gêmeas”. Tanto o homem quanto a mulher projetam suas imagens positivas simultaneamente, como se fosse um reconhecimento pelo já vivido um dia, o outro é aparentemente perfeito, o estado de fascinação é recíproco. Falando mais tecnicamente, o objeto de desejo nunca é real, e como estamos “recordando” vivências do processo primário, de quando nascemos, onde impera o pensamento mágico, tudo entre nós só pode ser lindo, brilhante e avassalador. Daí, colocar a rosa numa redoma de vidro posteriormente, e a sensação de proteger, domar, domesticar, tornando algo concreto e familiar, eternizando o momento anterior, e por que não, deixando tudo mais controlável.
Se não sou responsável afetivamente pelo outro, então está resolvido!
Há uma ponte no meio do caminho, quando se trata de passar da paixão ao amor. E isso pode acontecer ou não, como já o dissemos. O que foi “cobrado” do pequeno príncipe, com o uso da frase, foi a responsabilidade pelo amor, não pela sedução, pois ele já tinha passado os estágios iniciais do processo de encantamento, e ele e a rosa haviam avançado alguns passos nessa relação, apesar de tão temporária. Não tem gente que se apaixona e acha que a relação VAI DURAR a vida inteira?
A responsabilidade pelo que geramos no outro deveria partir do ponto em que passada a “alucinação” do encontro, a noção do “encantamento”, a sedução em via de mão dupla, pudéssemos parar um pouco e refletir se estamos ocasionando, nele ou nela, no outro, dor ou não, com minhas atitudes de “bom trato”, agrado ou amor, ou desistência e rejeição. Nem sempre proteger é o melhor caminho, mas o abandono realmente também não.
Aqui deixo minha reflexão para os términos, dolorosos e sofridos, mas muitas vezes necessários. Você é responsável pelo que o outro fantasiou? Não! Mas com certeza essa fantasia pode ser posta na mesa e conversada, para que não se transforme em lástima e dores para ambos os lados. Basta que possamos ser mais compassivos, uma vez que conhecemos agora um pouquinho mais de como isso acontece.
Bora refletir?
Feliz dia dos namorados! E namoradas! E parceiros de jornada!
Beeeiju no coração e na alma.
Janice Mansur é escritora, poeta premiada, professora, revisora de tradução e criadora de conteúdo.
Visite a autora também no site do Jornal Notícias em Português (Londres) e na Academia Niteroiense de Letras.
Canal do Youtube: BETTER & Happier
Instagram: @janice_mansur