Textos constantes do livro virtual “Pessoas” 2

9 min. leitura

Textos constantes do livro virtual Pessoas

(O livro pode ser lido na íntegra em www.wanderlinoteixeira.com.br)

Pessoas – contos diminutos. Niterói, RJ. Publicação na internet, 2015.

Leia a seguir alguns contos de Pessoas. O livro poderá ser lido na íntegra em www.wanderlinoteixeira.com.br

Adão

Adão não perdoa o padrinho, responsável pelo registro em cartório. Foi ele quem convenceu seus pais a imputarem-lhe o nome bíblico. Por conta disso, atávicas sensações o perseguem: um cheiro de barro impregnando-lhe as narinas e a impressão de haver um vazio no arco das costelas.

Brenda

De nada vale argumentar, citar outros nomes, relembrar brilhantes atuações. Para ele, Brenda é insuperável, sua atriz predileta. Afinal, desde muito ela finge amá-lo tão completamente que ele, mesmo descrendo inteiramente, compra todos os ingressos e assiste à encenação na fila do gargarejo.

Celestino

Aos 90 anos, numa tarde de frio intenso, Celestino reuniu suas lembranças desagradáveis no fundo do quintal e fez com elas uma grande fogueira. Enquanto houve chamas e lhe foi possível ouvir o crepitar, não arredou pé. Só bateu em retirada quando, após cessarem a combustão e os estalidos, um vento súbito varreu as cinzas das recordações. Irremediavelmente próximo da inevitável viagem, decidira desvencilhar-se do excesso de bagagem.

Dulce

Seus olhos soltam farpas. Sua voz rascante é adaga a liberar palavras ferinas. Em seu peito pulsa uma pedra. Mesmo antes de se perceber assim, dessa forma já se comportava. Vem daí, dessa ferrenha coerência, a razão pela qual Dulce não se conforma com o equívoco perpetrado em sua certidão de nascimento.

Estela

Estela nasceu para brilhar. Desde quando frequentava o berço, esteve anos luz à frente de seus pares. Aluna nota dez em todas as etapas de sua formação. Profissional de comprovada competência. Enfim, a vida de Estela sempre foi cintilante. Exceto no que tange ao matrimônio. Uniu-se a um astrônomo, que a exigia nua no leito conjugal para poder observá-la, sem jamais tocar em seu corpo ardente de desejo. Para seus queixumes, a mesma resposta evasiva: “Habituei-me a ver estrelas…” Todas as noites, Estela se despe para os olhos telescópicos do marido. Ultimamente tem notado certo desinteresse. Anda desconfiada de haver surgido um asteroide no universo do astrônomo.

Fernanda

Em determinado momento da vida de Fernanda, veterana das artes cênicas, as tantas personagens que até então encenara se apoderaram de sua alma. E o fizeram com tal eficácia que a levaram ao divórcio de si mesma. Atualmente, na varanda de uma casa de repouso, sempre ao crepúsculo, ela se acomoda numa poltrona e semicerra os olhos. Não demora, ecoam calorosos aplausos nas conchas dos seus ouvidos. Na verdade, folhas de uma frondosa mangueira farfalhando ao sabor do vento.

Gracinda

Gracinda coleciona cadernos. Neles, cola etiquetas, cartões os mais diversos, convites, bilhetes, cartas, recortes de jornais e revistas, entre outros guardados que ela entende pertinentes. Também anota fatos do seu cotidiano. É comum que escolha um caderno e debruce o olhar em suas páginas. Assim, mantém atual o que, por comum, já não seria. Dessa forma, Gracinda apara as unhas do tempo e assim o ludibria. Sempre que tenta arranhá-la, ele a afaga.

Hugo

Ultimamente, por conta do avanço da idade, lembranças relegadas por Hugo ao fundo do quintal têm habitado a relva do jardim. Vem sendo visto com certa frequência eliminando ervas daninhas, revolvendo a terra, espalhando adubo. Afinal, o replantio do passado exige cuidados.

Irene

Sob o sol morno da manhã de inverno, Irene aconchegou no colo seu ursinho de pelúcia e o ninou carinhosamente. Quando um vento, frio e repentino, varreu o espaço da praça, a filha de Irene, postada atrás da cadeira de rodas, cobriu as costas da mãe com a manta xadrez sempre presente nos passeios matinais.

Juliana

Sete dias após Juliana haver deixado o aconchego do ventre materno, seu pai segredou-lhe: “A vida, Juliana, sonata de compassos imprecisos, não é somente acordes e sorrisos, há armadilhas e tropeços, e trilhas muitas, e muitos preços”. Imediatamente após, pelo tanto que dissera à filha, assim tão cedo e à revelia, justificou-se: “Acontece, Juliana, que se lhe quero dar abrigo, protegê-la do medo e do perigo, quero também vê-la liberta para que possa alçar seu voo em hora certa”. Deu-se isso exatamente tão logo as asas de Juliana encorparam.

Ludgero

Com direito a mesa farta e drinques variados, Ludgero reuniu amigos de longa data, coadjuvantes de sua história. Foram muitas as recordações, cada qual puxando uma ponta do novelo. Quase madrugada, quando os últimos convidados se despediram, fios de vida, que antes se emaranhavam, repousavam retilíneos no chão da sala. Braços dados com o silêncio, Ludgero tratou de atá-los e o que fora novelo agora se encompridava em direção ao infinito.

Moema

Num forno de tijolos, Moema cozinha desejos e desapontos. Quando em vez, um deles estala, outro se quebra, quase sempre um sonho, as desilusões têm mais consistência. Examinar a fornada provoca em Moema permanentes sobressaltos. Ainda assim, gosta de moldar o improvável, de atribuir às suas peças precário equilíbrio. O jeito de ser de Moema sai também da boca do forno. Para ela, viver pede altas temperaturas e um corpo quase solto no ar.

Narcisa

Antenada na modernidade, crédula de que merece ser curtida, Narcisa se multiplica nas redes sociais. Fotos de suas “incríveis façanhas” navegam pelo ciberespaço. Por conta de um descuido, anda envolta numa crise existencial: postou uma selfie indiscreta e implacável, reveladora, em minúcias, da quantidade de rugas que habitam seu rosto.

Prudêncio

Desde o berço, jamais se arriscou a coisa alguma. Para ele, não havendo certeza, nada de efetivo acontece. E assim, pesando e medindo, o cauteloso cidadão pervaga por este mundo de indefinições. Hoje, aos 90 anos, no aguardo do ponto final, depois de se aventurar pelos meandros das muitas religiões Prudêncio se angustia pelas tantas interrogações para as quais não encontra respostas que lhe sejam convincentes.

Romualdo

Romualdo sempre teve por meta escrever poesia. Por conta do desejo, adquiriu dicionário de rimas e tratado de versificação. Assim instrumentalizado, produziu centenas de versos e nenhum poema. Seus escritos não causam espanto, não inquietam. Romualdo ignora a máxima do poeta pantaneiro, não consegue “voar fora da asa”.

Serafim

A objetividade era característica marcante da conduta de Serafim. Seu percurso, ele o fazia em trilhos. Chegou aos 50 assim e dessa forma pretendia prosseguir viagem até que viesse a descarrilar. Deu-se, porém, que se embrenhou nas trilhas de um repentino amor, jovem atriz performática. Liberto da tirania dos dormentes, Serafim anda sentindo desconforto por habitar um nome tão atrelado aos finalmentes, pelos quais já não se pauta. Ultimamente, tem pensado em adotar um pseudônimo.

Tereza

Envolta em desesperança, Tereza lançou âncoras em águas dantes navegadas. Para ela, nada além do que já foi faz sentido. Embarcação atrelada às pedras do cais, não se deixa atrair pela imensidão do oceano, não busca desvendar mistérios de além-mar, não se atreve mais ao desafio de dobrar o Cabo das Tormentas.

Pessoas
Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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