Poemas da cafeteria

7 min. leitura

I

Ergo um brinde ao simples, ao descompromissado,

a quem caminha comigo, braço dado

com esse meu jeito de ver a vida.

Aplaudo a quem completa a corrida

sem pensar no pódio,

a quem não faz do ódio alimento

nem dá abrigo ao lamento e ao enfado.

Louvo, a cada dia,

estes encontros na cafeteria:

conversas descontraídas com os amigos.

Observar atentamente o que se passa ao lado.

Tal como faço com o café pingado,

sorver a vida em goles lentos.

II

Na manhã chuvosa, arrastada,

saboreio pão de queijo,

sorvo goles de café pingado,

estico um olhar enviesado

para quem passa na calçada.

Parecem-me distantes,

quem sabe a ruminar o antes,

a imaginar doravantes.

Até que o sol ressurja em nova aurora

e resgate o sonho de viver o agora,

melhor é pôr de lado meu olhar enviesado,

retornar ao pão de queijo e ao café pingado.

III

Gosto do gosto do café pingado

tomado em goles parcimoniosos.

Gosto do ócio fecundo,

quando busco a rima, não a solução,

para os impasses deste vasto mundo.

Gosto dos momentos preciosos,

nos quais me entrego ao sonho

e me proponho a abraçar os tantos que já fui.

Gosto de alinhavar o nada

enquanto a vida flui apressada e arredia

na calçada da cafeteria.

IV

Do balcão da cafeteria,

passo os olhos pela pressa dos passantes,

artistas de um teatro sem coxia:

protagonistas, coadjuvantes,

e a grande legião de figurantes.

V

Não gosto do vento gelado

que ontem, na cafeteria,

me lambia o rosto.

O oposto, sim, me apraz:

a carícia quente que me faz o café pingado

tomado lentamente

enquanto a vida se desarruma

na procura contumaz de coisa alguma.

VI

Ele estava lá, o cão vadio,

na calçada da cafeteria,

esparramado, perto do meio-fio.

Fazia frio, havia um vento que o ampliava.

E o cão ali estava, ao desabrigo,

o olhar tristonho a dialogar comigo.

VII

O casal discute a relação ao sabor do chocolate.

Olhos plenos de esperança, o ancião acalenta uma criança.

A mulher de olhar fugidio desafia o frio, põe de lado o agasalho.

O homem passa e aperta o laço em torno do pescoço.

O cão vadio abana a cauda e late.

Eu, que a tudo assisto, espalho no balcão umas desimportâncias.

Sempre atenta às circunstâncias, a vida traça seu esboço.

VIII

Na mesa ao lado,

empresários falam de negócios.

Peço à jovem atendente

pão de queijo e café pingado,

sócios do meu ócio

merecidamente conquistado.

Posso, sem nenhuma pressa,

produzir poemas livremente.

Isso talvez não sirva para coisa alguma,

a não ser para afastar de vez a tentação

de retornar ao movediço mundo dos negócios.

IX

Na cafeteria, aconchegado,

entrego-me às delícias do café pingado

e às primícias do novo dia.

Tudo igual ao que era antes, aparentemente,

inclusive a jovem atendente de atitude cordial.

Contudo, a ocupar espaço,

há um traço a mais da finitude.

X

Eu a flagrei pensativa,

mão no queixo,

cotovelo no balcão.

Deixei de lado o pão de queijo,

fiquei a observá-la.

Tomara que sobreviva à tristeza,

que o riso volte a lhe enfeitar o rosto,

que o seu desgosto logo vá embora.

Lá fora, com certeza, à sua espera,

a vida reverbera.

XI

Agorinha mesmo o sol brilhava, neste instante chove.

O vento, até então ameno, sopra forte

e se move rumo ao norte.

Sob a marquise da cafeteria,

o cão vadio, antes arredio,

se arrepia e se enrodilha em pernas tolerantes.

Na mesa próxima ao balcão,

duas mulheres joviais dividem um pastel de camarão

e mastigam o fel das crises conjugais.

XII

Na mesa da cafeteria,

porto seguro,

o café pingado é oceano

em sua vastidão.

Lembrança, pano das velas.

Apuro o sextante,

ajusto o timão,

pouso meus olhos

em cartas de navegação.

Zarpo rumo aos mares dantes navegados.

Na infância, calmaria.

Na juventude, procelas.

Mais adiante, abrolhos

e as enseadas de águas contidas.

Assim tangidas,

singram as caravelas.

XIII

A névoa espessa tem lá seu charme.

Quando em vez, bom que aconteça,

mesmo que a nostalgia acione seu alarme

e o café pingado adquira um travo amargo.

Para não ficar aprisionado à sina da neblina,

ajo com presteza:

fujo da artimanha que a manhã me arma,

enfuno as velas

e com elas passo ao largo da tristeza.

XIV

A claridade da manhã de outono,

a sonoridade do cantar de um sabiá urbano,

o aroma do café pingado,

seu sabor a impregnar-me a boca,

o roçar da mão na barba por fazer,

o traçar de um plano que jamais será concretizado:

ideia por demais barroca,

vontade de viver cem anos mais.

Ao tempo em que almejo este desejo insano,

deixo escapar, resto de sono,

o mais incrédulo bocejo.

XV

Primeiro, cheiro de fruta madura.

Depois, o da grama dos campos de futebol.

Hoje em dia, aroma de café pingado.

O quintal, o gramado, a cafeteria:

travessura, gol, pôr do sol.

XVI

O vapor se desprende do café,

se dispersa levado pelo vento.

Breve momento.

Soa leve o sino da Sé.

Calidoscópio de passantes na calçada.

Cacos da vida que escapole.

Último gole.

Alinhavo impertinências neste fim de tarde.

Vontade vã de desfrutar da eternidade.

(In Café pingado / Wanderlino Teixeira Leite Netto. Niterói, RJ: Muiraquitã, 2012)

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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