I
Ergo um brinde ao simples, ao descompromissado,
a quem caminha comigo, braço dado
com esse meu jeito de ver a vida.
Aplaudo a quem completa a corrida
sem pensar no pódio,
a quem não faz do ódio alimento
nem dá abrigo ao lamento e ao enfado.
Louvo, a cada dia,
estes encontros na cafeteria:
conversas descontraídas com os amigos.
Observar atentamente o que se passa ao lado.
Tal como faço com o café pingado,
sorver a vida em goles lentos.
II
Na manhã chuvosa, arrastada,
saboreio pão de queijo,
sorvo goles de café pingado,
estico um olhar enviesado
para quem passa na calçada.
Parecem-me distantes,
quem sabe a ruminar o antes,
a imaginar doravantes.
Até que o sol ressurja em nova aurora
e resgate o sonho de viver o agora,
melhor é pôr de lado meu olhar enviesado,
retornar ao pão de queijo e ao café pingado.
III
Gosto do gosto do café pingado
tomado em goles parcimoniosos.
Gosto do ócio fecundo,
quando busco a rima, não a solução,
para os impasses deste vasto mundo.
Gosto dos momentos preciosos,
nos quais me entrego ao sonho
e me proponho a abraçar os tantos que já fui.
Gosto de alinhavar o nada
enquanto a vida flui apressada e arredia
na calçada da cafeteria.
IV
Do balcão da cafeteria,
passo os olhos pela pressa dos passantes,
artistas de um teatro sem coxia:
protagonistas, coadjuvantes,
e a grande legião de figurantes.
V
Não gosto do vento gelado
que ontem, na cafeteria,
me lambia o rosto.
O oposto, sim, me apraz:
a carícia quente que me faz o café pingado
tomado lentamente
enquanto a vida se desarruma
na procura contumaz de coisa alguma.
VI
Ele estava lá, o cão vadio,
na calçada da cafeteria,
esparramado, perto do meio-fio.
Fazia frio, havia um vento que o ampliava.
E o cão ali estava, ao desabrigo,
o olhar tristonho a dialogar comigo.
VII
O casal discute a relação ao sabor do chocolate.
Olhos plenos de esperança, o ancião acalenta uma criança.
A mulher de olhar fugidio desafia o frio, põe de lado o agasalho.
O homem passa e aperta o laço em torno do pescoço.
O cão vadio abana a cauda e late.
Eu, que a tudo assisto, espalho no balcão umas desimportâncias.
Sempre atenta às circunstâncias, a vida traça seu esboço.
VIII
Na mesa ao lado,
empresários falam de negócios.
Peço à jovem atendente
pão de queijo e café pingado,
sócios do meu ócio
merecidamente conquistado.
Posso, sem nenhuma pressa,
produzir poemas livremente.
Isso talvez não sirva para coisa alguma,
a não ser para afastar de vez a tentação
de retornar ao movediço mundo dos negócios.
IX
Na cafeteria, aconchegado,
entrego-me às delícias do café pingado
e às primícias do novo dia.
Tudo igual ao que era antes, aparentemente,
inclusive a jovem atendente de atitude cordial.
Contudo, a ocupar espaço,
há um traço a mais da finitude.
X
Eu a flagrei pensativa,
mão no queixo,
cotovelo no balcão.
Deixei de lado o pão de queijo,
fiquei a observá-la.
Tomara que sobreviva à tristeza,
que o riso volte a lhe enfeitar o rosto,
que o seu desgosto logo vá embora.
Lá fora, com certeza, à sua espera,
a vida reverbera.
XI
Agorinha mesmo o sol brilhava, neste instante chove.
O vento, até então ameno, sopra forte
e se move rumo ao norte.
Sob a marquise da cafeteria,
o cão vadio, antes arredio,
se arrepia e se enrodilha em pernas tolerantes.
Na mesa próxima ao balcão,
duas mulheres joviais dividem um pastel de camarão
e mastigam o fel das crises conjugais.
XII
Na mesa da cafeteria,
porto seguro,
o café pingado é oceano
em sua vastidão.
Lembrança, pano das velas.
Apuro o sextante,
ajusto o timão,
pouso meus olhos
em cartas de navegação.
Zarpo rumo aos mares dantes navegados.
Na infância, calmaria.
Na juventude, procelas.
Mais adiante, abrolhos
e as enseadas de águas contidas.
Assim tangidas,
singram as caravelas.
XIII
A névoa espessa tem lá seu charme.
Quando em vez, bom que aconteça,
mesmo que a nostalgia acione seu alarme
e o café pingado adquira um travo amargo.
Para não ficar aprisionado à sina da neblina,
ajo com presteza:
fujo da artimanha que a manhã me arma,
enfuno as velas
e com elas passo ao largo da tristeza.
XIV
A claridade da manhã de outono,
a sonoridade do cantar de um sabiá urbano,
o aroma do café pingado,
seu sabor a impregnar-me a boca,
o roçar da mão na barba por fazer,
o traçar de um plano que jamais será concretizado:
ideia por demais barroca,
vontade de viver cem anos mais.
Ao tempo em que almejo este desejo insano,
deixo escapar, resto de sono,
o mais incrédulo bocejo.
XV
Primeiro, cheiro de fruta madura.
Depois, o da grama dos campos de futebol.
Hoje em dia, aroma de café pingado.
O quintal, o gramado, a cafeteria:
travessura, gol, pôr do sol.
XVI
O vapor se desprende do café,
se dispersa levado pelo vento.
Breve momento.
Soa leve o sino da Sé.
Calidoscópio de passantes na calçada.
Cacos da vida que escapole.
Último gole.
Alinhavo impertinências neste fim de tarde.
Vontade vã de desfrutar da eternidade.
Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.
Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.
Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.
Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.
Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br
Um brinde, meu amigo. Espero em breve encontrá-lo para uma conversa em uma cafeteria para um café “pingado” para você, um coado para mim, esqueci o da Lena. Mas com certeza, todos sorvidos em ‘goles lentos’, como a vida.
“Na mesa da cafeteria,
porto seguro,
o café pingado é oceano
em sua vastidão.”
Achei bem melancólicos esses versos, mas não menos em pensar quando será o “último gole”, o último suspiro.
“Vontade vã de desfrutar da eternidade” leva o troféu de verso mais triste do poema. Acho que vou fazer um café e sorver aos poucos para esquecer minha finitude. Enquanto aguardo seu convite. Ótimo poema, Wanderlino! Um abraço
Grato, amiga. Vamos marcar o café. Grande abraço.
Tenho o livro “Café pingado”, de Wanderlino, que releio sempre. Isto, porque esse livro é um exemplo de livro bom, de poesia pura e de reflexão obrigatória.
Grato, amigo, pelo generoso comentário. Abç.
Caro Wanderlino, o seu versejar me leva de volta a um maravilhoso passado, na mesa do “café pingado”, naquela manhã, com os amigos, aí em Niteroi. Para mim foi um momento mágico, quando me vi, fora de minhas correrias nas escadarias forenses da minha boa terra da Bahia, sentado com você e seus amigos, batendo “papo
furado” e jogando conversa fora. Lembra? Só você, irmão, para me propiciar aquele instante, tão alegre, na mesa do “café pingado” . Obrigado amigo.
Claro que me lembro, querido amigo. Recebemos você na Roda só Batata Doce com enorme prazer. Àquela altura, éramos dez. Hoje, somos apenas quatro. Dois faleceram, quatro estão fora de combate. Os sobreviventes vêm mantendo a tradição. Porém, o Batata Doce Café já não existe. Em seu lugar, há uma loja de produtos eletrônicos. Sinal dos tempos… Agora nos reunimos em outro local. É isso. Receba um fraternal abraço e as mais efusivas saudações tricolores.
Café Pingado – Poemas da Cafeteria.
Huuum… quão gostoso e perfumado é! Todo muito especial!!!
Um aprendizado de poesia, inspiração… Volto sempre!
Aplausos poeta, obrigada! Abraço amigo, Liane Arêas
Café Pingado – Poemas da Cafeteria.
Huuum… quão gostoso e perfumado é! Todo muito especial!!!
Um aprendizado de poesia, inspiração… Volto sempre!
Aplausos poeta, obrigada!
Abraço amigo, Liane Arêas
Estimada Liane,
Desculpe-me por demorar a responder. Tenho andado na Roda Viva da qual nos fala a canção. Feliz por saber que você, quando em vez, volta a sorver o Café Pingado. Busque fazê-lo em goles lentos. Afetuoso abraço.