O teatro, o público, o tempo e a filosofia

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Já dizia o filósofo turco, pré-socrático Heráclito que nós não podemos entrar no mesmo rio duas vezes. Mesmo que sejam segundos depois, aquela água já correu, o tempo já passou e esse é um novo rio e nós somos uma nova pessoa. A nossa severa preocupação em chegar no futuro, nos distancia de viver a maravilha do agora.

Nossa sociedade que já não estava com a saúde mental muito equilibrada, enfrenta hoje novos desafios, ter perdido o controle do amanhã talvez de uma forma brusca pode ter nos ajudado a pensar no hoje.

A arte teatral, iniciou de um ritual Dionisíaco improvisado, com o tempo o roteiro foi organizado e ensaiado. Mas a verdade é que o improviso nunca vai sair do teatro. O exato momento de cada apresentação irá variar de acordo com o público que a recebe e de como os atores reagem aos acontecimentos naturais da vida ao vivo. Por mais técnica que um ator tenha, por mais ensaio que o espetáculo tenha tido, nunca se poderá controlar os fatos da vida real. Um espirro que chega, uma pressão baixa, um branco, uma risada fora de hora.

Heráclito

Essa é a maravilha do teatro, assim como o rio de Heráclito ele nunca será o mesmo, impossível um espetáculo se repetir. Cada experiência é única e eterna. Mesmo que se filme, já será cinema, o teatro é uma vivência extremamente intensa de se estar totalmente focado no presente momento.
Para os atores, esse jogo do agora é essencial e primordial para se contar a história e para o público mesmo que “passivo” é também uma experiência de se concentrar no momento, de viver aquela história que está sendo narrada.

Para Heráclito de Éfeso, em sua teoria do Devir tudo flui e nada permanece, o universo é um eterno fluir como a chama de um fogo que pode até parecer a mesma, mas está em constante transformação, como as águas dos rios que nos banham.

E assim, o teatro além de todo reflexo da sociedade, além da capacidade de nos fazer sorrir, chorar e pensar, ainda nos proporciona a capacidade de viver o presente eterno, sem pensar no amanhã ou nas próximas horas. Assim como a vida que por muitas vezes acreditamos ter controle de todos os passos, como um espetáculo bem ensaiado, é importante estarmos abertos para o improviso, para se adaptar para o que ela traz. A flexibilidade nos permite não sofrer por desejar que as coisas fiquem engessadas dentro de nossos planos e expectativas. O ator pode até imaginar, mas nunca terá certeza qual o momento a plateia irá rir, qual frase irá naturalmente permitir o sorriso solto do coletivo, ao determinar o que é engraçado, ele corre o risco de engessar a história e se frustrar com a reação da plateia, que pode escolher rir em um momento em que ele não esperava.

Assim podemos fazer um paralelo com a vida, deixar fluir os fatos sem a tendência de querer controlar as reações alheias, pois essa é uma certeza, controle só temos de nós mesmos (quando temos inteligência emocional, no caso) e essa expectativa poderá ser recheada de frustrações.

Contudo, esse momento do mundo, onde todos tiveram que lidar com o cancelamento de planos e sonhos, a humanidade além de tudo, teve a oportunidade de experimentar deixar o rio correr solto e se banhar diariamente num dia único e eterno. Sem promessas, sem expectativas, aberto, livre para o agora. Isso não nos impede de ter esperança e sonhar, mas nos traz para a realidade do tempo, esse tal relógio que criamos, esse amanhã que nunca chega, pois o hoje é o amanhã de ontem. E se assim vivermos, inteiros no agora, teremos a leveza do ator que está pronto para improvisar com o que a vida traz, que entende que o roteiro é uma base, que será influenciada pelas naturais e incontroláveis reações da vida.

Que possamos pensar nessa água que flui, nesse fogo que se adapta e viver o presente da forma mais plena possível. Tudo muda se tem vida, tudo é mutável e único.


Fernanda Magnani – Atriz, Professora de Teatro e Palestrante

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