Em épocas como a que vivemos, é de se impressionar como o caso ocorrido no atentado ao Parque Olímpico Centenário em 27 de Julho de 1996, durante as Olimpíadas de 1996 em Atlanta, Geórgia, e os eventos repercussores após o mesmo; ainda é capaz de ser refletido como uma retratação fidedigna sobre como os poderes institucionais tem na sua capacidade de criar opiniões e ditar o rumo da vida de alguém caso o escolha a fazer. Assim como foi retratado em um filme como “O Caso de Richard Jewell” de Clint Eastwood. Um filme que pode ter passado um pouco despercebido entre o público Brasileiro quando estreou no inicio de 2020, logo em pré-pandemia, e ainda ter passado longe de premiações, por alguma razão muito inóspita, ainda mais pela boa recepção que teve, e claro o valor que possuí como obra.
Do ponto de vista crítico, não era menos de se esperar que novamente nessa década voltaríamos a ver a lenda vida de Clint Eastwood voltando seu olhar para uma história real, que cobre boa parte de sua filmografia como diretor, e que o permitisse abordar todos os conceitos que permuta ainda na consagrada visão patriótica americana, tema que também sempre lhe percorreu a atenção e explorou de intrínseca e sutilmente subversiva. E novamente, os desconstruir em um estudo intimo de desmistificação de mitos e símbolos quebrados pelo tempo, e através disso talvez exaltar o verdadeiro sentido de “heroísmo”!
Todos os seus filmes recentes desde “Sniper Americano”, “15h17: Trem Para Paris”, “Sully: O Herói do Rio Hudson”, e o próprio “A Mula” já tinham servido como experimentos disso em diferentes vertentes de gênero e temáticas, e agora Richard Jewell se prova como mais um destes neste sentido da exploração da “Americana”. Não só realizado de forma formidável, mas também se mostra como um dos melhores de Eastwood dentre suas investidas neste fascínio desmistificador que compõe uma nação – e como a mesma consegue ir além em seu retrato humanamente aterrador!
É, explicitamente, uma história sobre heroísmo. Mas que tipo de heroísmo seria esse além daquele redentor salvador de vidas?! E onde o perigo não está simplesmente no custo de perdas vidas, mas sim naqueles capazes de destruir toda a vida de um só individuo. São nestes moldes em que Eastwood constrói na história de Richard Jewell a sua versão do “O Homem Errado” de Hitchcock, onde similarmente, se torna a história de homem comum, de boa índole, extremas boas intenções, e o coração cheio de bons ideais que é enganado e posto à prova de sua moral pelas forças do governo e o público que o tentam pressionar até o limite, e todos a sua volta junto a ele. Os sucumbindo dentro de uma tragédia intima/pessoal, nos tornando partes e testemunhas dessa tortura psicológica retratada.
Se parte do espetáculo de intimidades gigantescas e ressoantes criadas aqui já começa na magistral sequência de suspense com a recriação do atentado, dirigido com maior firmeza pelo cineasta de 90 anos, e estabelecendo a ação que Jewel (Paul Walter Hauser) tomou dentro daquele evento, passo a passo, nos garantindo a verdade seu lado da história. O restante da narrativa que se constrói no seu rescaldo, busca extrair o heroísmo que partem das ações daqueles que buscam ajudar a provar a inocência de Jewell, seu advogado Watson Bryant (um excelente Sam Rockwell) e sua mãe Bobi Jewell (Kathy Bates), frente aos verdadeiros vilões da história: a mídia e o FBI, as forças do governo que deveriam ser responsáveis em servirem ao bem do povo e não as forças destrutivas contra o mesmo.
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É uma já clássica velha história no papel, e sua execução é simples, direta e precisamente (e soberbamente) coesa rumo ao que busca extrair da jornada humana de Jewell e seus aliados, mas a densa complexidade que há aqui parte das sugestões que todas as linhas temáticas que o filme apresenta e cruzam caminho. O poder incontrolável da mídia de rapidamente exaltar ídolos e destruir monstros, ambos os conceitos que eles próprios ajudam a criar e vender para um público e sociedade facilmente manipuláveis por fatos também com capacidade de serem manipulados onde a verdade é um longo, demorado e caro caminho para se perseguir atrás.
A latente irresponsabilidade e extremismos tomados por todas essas vertentes se refletem na sua fidelidade com os eventos retratados de forma historicamente fiel, e ainda mais relevante por ainda estarem presentes se refletindo em nossa atualidade. Onde uma simples informação ou sugestão nas mãos de um se tornam irrefutáveis verdades capazes de destruir por completo uma vida inteira, e conceitos e valores são deturpados em troca de beneficio próprio, dominados por ego e orgulho. Mas também onde a coragem, determinação e genuína compaixão são as armas usadas para se enfrentar de cabeça erguida essa latente vilania que se é criada através de intenções que partem longe de seu objetivo, e clamando pelo o que é o certo!
Seja representado na jornalista Kathy Scruggs, de uma sedutoramente venenosa Olivia Wilde (quase uma femme fatale moderna) que apenas busca uma história para lhe acarretar fama e nome, custe o que custar, embora que demore a ela vir realizar o tamanho do mal que fez, e claramente se arrepender pelo mesmo. E o agente Tom Shaw de Jon Hamm que é simplesmente o melhor tipo de antagonista, tanto para o lado fictício de entretenimento da obra, quanto também o que poderia representar perfeitamente tão bem essa história; aquele que acredita cegamente e arrogantemente que está certo em achar que Jewell é o culpado. Você o detesta por isso, mas não o vê de todo como vilão, e sim alguém que quer provar a razão dele a qualquer custo, o completo falso íntegro.
A própria escalação de John Hamm no papel meio que cumpre esse papel, sua cara e jeito de bom moço, o mostra com um semblante de aparente boa pessoa. E coloar presença na cena do atentado, dele estando ali ajudando as pessoas, mostra o mínimo de índole humana que ele possuí. Para mas tarde, ilustrar amplamente a perseguição explicitamente obsessiva que ele inicia contra a provar a culpa de Jewell, também custe o que custar! Revelando uma vilania indireta e que nem ele percebe estar fazendo parte ou cometendo. Busca estar fazendo o que é o certo, mas agindo de forma completamente extrema e hipócrita contra o que sua índole, e o seu poder de justiça, simboliza. Leia isso dentro de um contexto de uma regência política traiçoeira, quanto também como ele (e a Kathy de Wilde) encarna de forma quase literal, o espírito punidor que muito move esses movimentos de cancelamento que se propagam como justiceiros alados das redes sociais, mas agem dentro de uma frieza cega ao crerem em uma “verdade” irrefutável e absoluta!
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Todos batendo de frente com o formidável protagonista de Jewell, cuja personalidade se mostra algo além do que os outros podem esperar. Pois aí que está um dos pontos do personagem no filme, e um sub-tema que o próprio filme adota, Jewell é alguém que não quer ser visto ou tratado como o típico balofo inocente ingênuo que deixa os outros se aproveitarem dele. Ele quer se provar alguém capaz de raciocinar por si próprio, que não deixa outros subestimarem sua inteligência, sem perder a identidade e os valores que ele possui. Ele batendo boca com Rockwell no meio do filme é exatamente isso: “Eu não quero pessoas me dizendo ser algo que eu não sou!”.
Que ambos servem como sua forma de desabafo sobre as falsas acusações que ele está enfrentando, quanto às pressões internas que o pedem para contra-atacar seus acusadores de forma igualmente brusca e revoltosa. Mas sabe que não se enfrenta o ódio com mais ódio, a lição que as gerações atuais parecem não ter aprendido ainda! E a forma com que o personagem enfrenta todo o mundo que cai contra ele é de forma verdadeiramente inspiradora, mas que não deixa de se mostrar uma humanidade em angústia dominada por medo e frustração de tudo aquilo que acreditava, talvez refletindo os próprios sentimentos de Clint e de todos nós nessa história. Com a performance de Paul Walter Hauser sendo algo nada menos que soberbo e cujas premiações nunca seriam capazes de reconhecer!
Assim como as cruas verdades que o filme explora e desmistifica frente à valores tomados como certos e moralmente irrefutáveis. A justiça que nos governa, ou as mesmas que criamos para denunciar aquilo que achamos ser o errado; mas tudo que é capaz de nos cegar frente à empatia, perdão e reconhecimento, contra uma “verdadeira verdade” tomada como pura e certa, e cujo ego nos cega à enxergar sua legitimidade. Se Jewell conseguiu escapar desse mal provando sua inocência, mas talvez muitos outros, assim como bem mostra o aterrador final de “O Homem Errado” de Hitchcock, sucumbiram a mesma com cicatrizes eternas e deixando as verdadeiras vitimas para trás. Apenas o tempo dirá o quão forte e eficiente é esse outro soberbo trabalho de Eastwood por detrás das câmeras. Que possa ainda não ser o seu último!
Raphael Klopper – estudante de jornalismo