O nomadismo digital é um fenômeno alavancado pelas novas tecnologias que ganhou força com a pandemia. Trabalhar em um lugar on-line e viver em outro ou viajar enquanto trabalha já deixou de ser sonho para muitos profissionais ligados à comunicação ou setores criativos. O isolamento em massa, contudo, forçou a digitalização de setores antes exclusivamente presenciais, como tribunais e consultórios, e profissionais de áreas mais tradicionais, como Direito, também aderiram de vez a essa nova realidade – caso das sócias do escritório Pineda e Krahn de Curitiba, que hoje atuam do Japão, da Inglaterra e de diversas cidades do Brasil.
“Jamais passou pela minha cabeça que eu poderia gerenciar um escritório e trabalhar normalmente não estando pessoalmente na sede do escritório. Morar fora de Curitiba não fazia parte dos meus planos”, conta a advogada Manoele Krahn. A experiência da especialista em Direito Ambiental começou antes da crise sanitária, mas só foi consolidada agora, com as alternativas não-presenciais aceleradas.
Tribunal brasileiro no Japão
“A pandemia forçou a adaptação dos tribunais ao acesso digital. Antes, mesmo existindo a possibilidade de fazer reuniões on-line, não era algo comum. Hoje, a regra é que a reunião e até mesmo as audiências sejam on-line”, afirma Manoele. O escritório Pineda & Krahn, de Curitiba, possui cinco sócias e a demanda pessoal de Manoele acabou por torná-las pioneiras no nomadismo digital, o que facilitou o atendimento aos clientes e tornou-se uma vantagem estratégica durante os meses de isolamento social.
Manoele é casada com um jogador de vôlei e, para acompanhar a família, já morou na Polônia, na Turquia e no Japão, onde está há uma ano e seis meses na cidade de Kariya. “O processo foi sendo feito aos poucos, no início, por não saber que poderia dar certo, minhas viagens não eram longas. O começo foi difícil porque nossa estrutura não era voltada para o acesso remoto. Minhas mudanças começaram em 2012, ainda não se falava sobre reuniões on-line de forma tão natural como hoje. Depois que estruturamos nossos arquivos e sistemas para acesso remoto, porém, as coisas fluíram muito bem”, relembra a advogada.
A maior dificuldade em ter um negócio no Brasil e viver no Japão está ligada ao fuso horário. “Algumas reuniões e audiências precisam ser marcadas na parte da tarde do Brasil, madrugada para mim, e isso dificulta um pouco. Mas, nestes momentos conto com o apoio da equipe do Brasil e temos conseguido administrar bem”, diz Manoele. A advogada sente falta da convivência pessoal no escritório, mas, como as temporadas de vôlei duram 9 meses do ano, a família ficaria muito tempo separada. “Ao mesmo tempo, se eu deixasse minha carreira para acompanhá-lo certamente me sentiria incompleta e frustrada. Além disso, não há como explicar a possibilidade de conhecer profundamente outras culturas ao mesmo tempo em que você trabalha normalmente no seu país. É realmente um privilégio”, afirma.
Manoele participa integralmente das atividades do escritório. “Minha participação é total. Eu acompanho todos os processos normalmente, participo das reuniões, estou em constante contato. Os clientes costumam achar curioso, mas entender bem a situação. Acho que a pandemia tornou o trabalho digital comum”, aponta a advogada.
Cultura empresarial global
A experiência de Manoele inspirou e transformou a cultura interna do escritório Pineda e Krahn. O protocolo do escritório é que cada advogada tenha autonomia, mas responsabilidade sobre as suas tarefas. A sócia Maria Fernanda Messagi, por exemplo, vive em Curitiba, mas recentemente optou por passar dois meses na Inglaterra com a irmã, mantendo sua rotina de trabalho no digital.
Com fuso de apenas 3 horas, a adaptação aos horários do Brasil foi mais tranquila e trouxe oportunidades pessoais. “Como acordo mais cedo que o horário do Brasil, posso passear um pouco pela cidade e trabalhar até mais tarde ou me organizar e começar antes para terminar mais cedo”, conta Maria Fernanda.
Samanta Pineda, sócia fundadora com Manoele, também aderiu ao estilo nômade digital, mas sua motivação inicial foi o próprio trabalho. “Em 2001, não imaginava que poderia trabalhar e manter um gerenciamento eficiente à distância, mas, em 2006, quando comecei a trabalhar em Brasília com o Código Florestal, já conseguia participar de reuniões por viva-voz”, lembra Samanta. Foram oito anos de trabalho concomitante em Brasília e outros estados, o que fez com que a digitalização de processos e documentos chegasse precocemente ao escritório.
Hoje, mesmo com aulas em São Paulo, Brasília e Porto Alegre, Samanta pode escolher viver em Florianópolis. “Gosto da cultura do sul do País, morar perto do mar sempre foi um plano, o lugar é lindo e, principalmente, tenho uma filha que faz faculdade ali e poder morar perto dos filhos é um privilégio”, celebra.
Para ela, a eficiência do home office em tempos de pandemia terminou de chancelar o nomadismo digital para carreiras tradicionais. “A pandemia acelerou e aprimorou métodos digitais e, no caso do Pineda e Krahn, melhorou a relação custo-benefício dos atendimentos, já que temos grande número de clientes em áreas rurais e estados distantes”, explica Samanta. Com o crescimento do Brasil no cenário ambiental mundial, a advogada, que esteve na Escócia em novembro para COP-26, não descarta a possibilidade de viver fora e manter as atividades nacionais.
“O mundo ficou pequeno com tantas formas de estar presente. Eu sempre quis a experiência de morar em outro país e, agora, com o tema das mudanças climáticas, negócios sustentáveis e o protagonismo do Brasil, acho bem provável que isto aconteça”, adianta..
Como ser uma advogada nômade digital? A primeira regra do nômade digital, segundo Maria Fernanda Messagi, é estabelecer e tornar fácil a comunicação com quem fica no Brasil. “Tenho um chip de celular local para estar sempre conectada.
A disciplina também é uma exigência do trabalho on-line. “Tenho um quarto que virou escritório, com mesa, livros e computadores. Tenho uma assessora local e minha jornada diária vai das 8h30 às 19h, com intervalo sagrado para o almoço entre 12h30 e 14h, com a família na mesa”, revela Samanta Pineda.
Para ela, a tecnologia veio para ficar, embora um cafezinho e uma conversa mais pessoal sempre façam falta na rotina e devam ser de alguma forma compensados para evitar um isolamento digital extremo. “O calor da relação humana não é o mesmo em reuniões remotas. No entanto, a presença vai sendo retomada em algumas ocasiões. Temos que mesclar”, diz Samanta.
Para quem sonha em ter uma carreira tradicional e uma vida de viagens, a dica de Manoele Krahn é direta: “Faça parte de uma equipe que te compreende e te apoia.” A advogada afirma que, eventualmente, algumas coisas precisarão ser feitas presencialmente e que ter suporte faz diferença. “Se você não tiver pessoas que entendam sua realidade, será impossível seguir. Além disso, seja transparente com seus clientes. Eles precisam saber que apesar de estar longe, você está com tudo sob controle e está sempre à disposição”, explica.