Leia textos inéditos de Wanderlino Teixeira Leite Netto

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Des (encontro)

         O Sol aquecia a manhã de inverno. Os notívagos da véspera provavelmente dormiriam, alheios aos garis a recolherem os restos da fuzarca espalhados pelo chão da praça. Naquele horário, idosos, no afã de fixar o cálcio, se deixavam ficar pelos bancos, olhares perdidos nas lonjuras. Foi então que eles surgiram, a mulher com a cadelinha, o homem com o cão. Vieram caminhando, dois de lá, dois de cá, até se esbarrarem. Focinho com focinho, sisudez com sisudez. A comunhão dos bichos em total contraste com o alheamento de seus donos: o som dos latidos e a ressonância dos silêncios; o alegre abanar dos rabos e a inexpressividade das mãos. Durou um quase nada. Logo se foram, em sentidos opostos, até desaparecerem nas quebradas das esquinas.

Pontos de vista

         Olhando a paisagem, Flora medita: Árvores urbanas, principalmente em ruas de trânsito intenso, merecem aplausos. Mesmo submetidas à fumaça dos veículos, à poeira excessiva, aprisionadas pelo cimento, enraízam-se, tornam-se frondosas, abrigam pássaros…

         Absorta, Flora prossegue dando asas ao devaneio, enquanto cantos e gorjeios acordam o dia e um balé alado enfeita o amanhecer: andorinhas, sabiás, bem-te-vis, alvoroçadas maritacas.

         Faz algum tempo, adquiriu esse hábito: manhãzinha, abre a janela da sala do apartamento para usufruir do espetáculo que o arvoredo, generosamente, lhe propicia. Vez por outra, flagra uma avezinha ciscando no parapeito e trava com ela um dedo de prosa. Quando um beija-flor faz floreios, um sorriso aflora.

         Porém toda moeda tem duas faces. Do lado oposto, da janela da cozinha, Flora não vislumbra árvores, apenas a aridez dos casulos de cimento e cal. Ainda assim, mesmo sem vegetação, vida existia que passarinhava. De uns dias para cá, no entanto, bailado e cantoria já não acontecem. Braços abertos, chapéu de palha, vestimenta espalhafatosa, um espantalho cumpre com eficácia a missão que lhe foi destinada.

Gosto amargo de caramelo

         Da janela da sala, lançou um olhar para o Cristo. No enorme pedestal rochoso, lá estava Ele, iluminado, braços abertos, a cidade a pulsar sob seus pés. Quando chegaram as gatas, e foram duas, vieram também as telas nas janelas e a lembrança da treliça do confessionário. A partir de então, o verde da mata, as estrelas e Ele, principalmente, tudo se fragmentou por conta das malhas de náilon. Era como se a amplitude tivesse sido aprisionada em inúmeras celas, uma para cada pedaço da paisagem, como se o Cristo houvesse perdido a magnitude, a inteireza, e se transformado numa figura de jogo de quebra-cabeça.

Certo dia descobriu como agir para recuperar a plenitude: escolhia um dos losangos de náilon, encostava um olho no vazado da figura geométrica e fechava o outro; para não cansar, revezava, ora o direito, ora o esquerdo. Valia-se do artifício quando sentia necessidade de dirigir palavras ao Cristo, não apenas em momentos de aflição, também para desfiar amenidades. Porém, mesmo quando abordava o trivial, não conseguia descontrair. Trazia consigo uma culpa, uma inquietação de consciência, grudadas em sua alma feito calda de caramelo. Lá estava o Cristo, ao alcance apenas do seu olhar, irremediavelmente pétreo. Gostaria de uma roupagem simples para as palavras que Lhe dirigia, mas elas sempre insistiam em vestir traje a rigor.

Nem as muitas sessões de análise foram capazes de libertá-la do gosto acre advindo de um momento de doçura. Teria sete anos, não mais do que isso e era Semana Santa. Na igreja da cidadezinha, posto num caixão forrado de cetim roxo, corpo de madeira, braços e pernas articulados, cabelos humanos implantados, olhar sofrido, muitas chagas pelo corpo, Cristo expunha-se à visitação dos fiéis. Ia vê-Lo imediatamente após o almoço, quando o movimento escasseava. Mesmo o padre e o sacristão dificilmente ali estariam naquele horário. Um, entregue ao sono no conforto da casa paroquial. O outro, a dormitar no sofá da sacristia. Sendo assim, podia afagar o Senhor sem as reprimendas dos mais velhos.

         — Tire a mão daí, menina! Não vê que é pecado!

         Acuada, engolia uma indagação:

(— Peca quem faz carinho?)

         Com o Cristo das chagas ao seu dispor, podia tocá-Lo, evitando bulir nas feridas esculpidas a golpes de talhadeira, tão reais para seus olhos infantis. Certa vez chegou a erguer-Lhe o braço, mas logo se arrependeu, receosa de causar-Lhe desconforto. Veio-lhe a ideia de ofertar-Lhe os caramelos que trazia consigo, cinco ao todo, de forma a adoçar-Lhe o sofrimento. Antes de posicioná-los sob as vestes de Jesus, na expectativa de fazê-los ainda mais apetecíveis (o aroma, a textura…), desembrulhou-os um a um.

         No Sábado de Aleluia, a notícia se espalhou pela cidade: saíam formigas do caixão de Cristo, carreiras delas carregando nos ferrões uma substância vermelha e viscosa.

— O sangue do Senhor! – afirmara, convicta, uma beata.

         Pobre barata-de-sacristia, sempre à cata de sentido para seu vazio existencial…

         — O milagre da multiplicação das saúvas! – exclamara a papa-hóstia para o pároco ainda tonto de sono, despertado que fora da sesta costumeira pelo alarido das carolas à porta da casa paroquial.

         Somente ela, menina ainda na fé, coraçãozinho pleno de amor sem dogmas, conhecia a verdadeira causa do surgimento das formigas carregadeiras, apenas ela sabia que as saúvas levavam nos ferrões fragmentos de caramelos. Por cerca de três anos, carregou consigo o segredo. Na véspera da primeira comunhão, confessou tudo ao vigário e recebeu, além de uma reprimenda, a incumbência de rezar, de joelhos, em sequência, 50 ave-marias. Da mesma forma, igual quantidade de salve-rainhas.

         No rastro da confissão, revelara algo mais, também julgado pecaminoso:

         — Chamei Ele de você…

         Nem chegou a concluir. Testa franzida, voz severa, o confessor sacramentou:

         — A mocinha já está em idade de aprender a dirigir-se ao Salvador na segunda pessoa do plural.

Preparava-se para deixar o confessionário, quando sua penitência obteve uma sobrecarga.

         — Pelo despropósito da coloquialidade, reze também 50 padre-nossos.

         Ajoelhada no cimento frio, sob o olhar severo de um santo de louça, cumpriu a penitência. Lá pela vigésima salve-rainha, esvaiu-se a contrição. Rezou o restante automaticamente. Vazias de sentimento, as orações não mais fizeram sentido. E as saúvas povoaram-lhe o pensamento. Em seus ferrões, amargos pedaços de caramelos.

         Tanto tempo decorrido, sempre que se aventura pelo vazado do losango de náilon, dado momento, no topo do morro, não vê o Cristo, mas o santo de louça, olhar severo de condenação.

Sob a luz mortiça da luminária violeta

         Convicto de que a família se desestruturara no momento em que as feministas começaram a queimar sutiãs em praça pública, Ataulfo Lago habituara Amália, que o esposara virgem e sonhadora, a viver apenas para ele. Mais tarde um pouco, também para Ataulfo Lago Jr., hoje nas fraldas da adolescência. “Amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores”, cercava Amália de mimos. Ela, por sua vez, num plágio à quase xará, sempre que o via contrariado, também dizia: “Meu filho, o que se há de fazer?”

         Algo, porém, acontecia, a carecer de explicação. Amália andava esquiva, ensimesmada. Na cama, era quase estátua. Ataulfo Lago se questionava: estaria a esposa cansada de ater-se exclusivamente às lides domésticas num tempo em que as mulheres iam à luta? Dr. Américo garantia-lhe não ser este o motivo. Ao procurá-lo, o marido de Amália já andava com um punhado de grilos atormentando-lhe a cabeça. Quando a esposa começou a mostrar-se afetivamente arredia, encaramujada, os bichinhos verdes o apoquentaram ainda mais. Nas sessões de terapia, mostrava-se pelo avesso para o Dr. Américo, desvelava-se inteiramente. Sempre sob a luz mortiça de uma luminária violeta, o analista o ouvia atentamente. Com voz pausada, garantia-lhe que o amuo de Amália nada tinha com o fato de ela dedicar-se apenas às prendas do lar.

         Belo dia, Amália abriu o jogo. Quer mesmo saber? Ato contínuo, retirou papéis de uma gaveta e os esparramou sobre a mesa da sala. Cartas, uma dúzia delas, todas assinadas por uma tal Ociréma. Leia – disse Amália para o marido em tom de desafio.

         Ataulfo Lago juntou as missivas num maço incômodo. Cada página lida aumentava-lhe o desconforto. Quem seria Ociréma, a se declarar sua amante?

         Amália via na palidez do marido, no suor a lhe empapar a testa, confissão de culpa.

         Ociréma, quem seria? – indagou mais uma vez Ataulfo Lago de si para consigo.

         Amália percebia trêmulas as mãos do infiel. Imaginava-as em outra situação, percorrendo resolutas o corpo da amante em carícias libidinosas. Um pensamento a fustigou: como seria a sirigaita? Amália se apequenou: certamente mais nova do que ela, sem estria e celulite; trabalharia fora, sem dúvida o oposto dela, sempre tão submissa, tão forno e fogão; usaria roupas de grife, não aqueles vestidinhos simplórios que ela se habituara a vestir. E as cartas? Picantes, reveladoras de uma intimidade quase obscena. Com ela, aquele recato todo; com a outra, um pervertido… Ociréma… nome mais estapafúrdio… E aquele acento? Ridículo!

         Ataulfo Lago não tinha o que dizer. De nada adiantaria declarar não saber quem seria a libertina, que com ela nunca se envolvera. Afinal, nas cartas, tudo levava a crer exatamente o contrário. Em certos trechos, Ociréma referia-se a Amália com riqueza de detalhes. Só mesmo por intermédio dele seria possível saber tanto. Sendo assim, calou-se.

         Amália já se decidira. Retornaria à casa materna com mala, cuia e Ataulfo Lago Jr.. E exigiria polpuda pensão! Disse isto ao já considerado ex-marido antes de se trancar no quarto para chorar sem testemunhas.

         O chão parecia faltar-lhe no momento em que Ataulfo Lago, abraçado ao maço de cartas, chegou ao consultório do Dr. Américo. Sob a luz mortiça da luminária violeta, impassível, o terapeuta leu as correspondências, ouviu o desabafo do analisando. Ao se dispor a pronunciar-se, com a costumeira voz pausada, olhava nos olhos lacrimejantes do interlocutor. Considerou a situação irremediavelmente definida, sem retorno. Enquanto falava, acariciava os pelos do braço do homem à sua frente.

         Ataulfo Lago percebeu solidariedade no afago do analista. Até o momento em que, numa das cartas, leu ao contrário o nome de Ociréma, de trás para a frente, do fim para o começo, da confiança para o desaponto. Depois, observou: tanto as cartas quanto os demais escritos espalhados sobre a mesa tinham todos o mesmo tipo de letra – arial. Havia em Ociréma aquele acento. Agudo, a lembrar-lhe a faca com a qual o negro Amâncio, nariz abatatado e de ventas largas, carapinha desgrenhada, abatia porcos no terreiro da fazenda. Ali mesmo, no consultório, sob a luz mortiça da luminária violeta, sangrou o doutor Américo. Cravou entre as costelas de Ociréma, na altura do coração, a espátula de ponta fina e do mais puro aço, até então usada para cortar papéis.

Wanderlino

Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de julho de 1943. Reside em Niterói (RJ) desde os quatro anos de idade.

Administrador (bacharelado e licenciatura plena), exerceu a profissão na Petrobras. Aposentou-se em 1993.

Já publicou 25 livros, três deles virtuais. Seu fazer literário abrange poesia, crônica, conto, ensaio, biografia e pesquisa histórica.

Cofundador da Associação Niteroiense de Escritores (ANE). Na categoria de membro correspondente, pertence a várias instituições literárias.

Para saber mais a respeito de seus escritos, acesse www.wanderlinoteixeira.com.br

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