“Dark”, a primeira série alemã original da Netflix, conquistou o público não só por sua complexa narrativa, mas também por temas como viagem no tempo, paradoxos temporais e o conflito entre livre-arbítrio e o destino. Lançada em 2017, a série se destacou como uma das produções mais interessantes e intelectualmente desafiadoras da plataforma. Com três temporadas que se entrelaçam em uma teia de eventos aparentemente impossíveis, “Dark” é uma reflexão sobre o tempo, a moralidade e o impacto das nossas escolhas. Vamos entendê-la?
A premissa
A história começa em 2019, na pequena e fictícia cidade alemã de Winden. Após o desaparecimento de uma criança, Mikkel Nielsen (Sebastian Rudolph), a cidade se vê mergulhada em uma série de eventos misteriosos que conectam quatro famílias ao longo de várias gerações. A trama rapidamente evolui para algo muito maior, revelando a existência de portais temporais, segredos guardados por décadas, e uma misteriosa organização chamada “Sic Mundus”, que parece ter domínio sobre as viagens no tempo.
O grande mistério central de “Dark” é a conexão entre passado, presente e futuro, onde eventos de uma época influenciam outras, criando uma cadeia de acontecimentos que parece inevitável. No entanto, a série logo se aprofunda em dilemas existenciais e filosóficos, questionando se é possível quebrar esse ciclo e mudar o destino.
A teoria do ciclo temporal
Uma das teorias centrais da série é a ideia de um “ciclo temporal” — o conceito de que o tempo não é linear, mas sim circular. Personagens como Jonas Kahnwald (Louis Hofmann / Andreas Pietschmann) e Claudia Tiedemann (Lisa Kreuzer / Julika Jenkins / Gwendolyn Göbel) descobrem que o tempo se repete indefinidamente em um loop fechado, no qual os mesmos eventos acontecem repetidamente, levando aos mesmos resultados trágicos. Eles tentam descobrir se é possível interromper esse ciclo, ou se estão condenados a repeti-lo para sempre.
Esse ciclo temporal é sustentado pela existência de buracos de minhoca e portais que ligam diferentes pontos no tempo. Em “Dark”, o tempo parece seguir regras próprias, e os personagens se veem presos nesse eterno retorno, onde cada decisão parece já ter sido predeterminada por eventos passados.
Livre-arbítrio vs. Determinismo
Outra questão filosófica da série é o embate entre livre-arbítrio e determinismo. Muitos personagens acreditam que podem mudar seus destinos — Jonas, por exemplo, luta para evitar se tornar o vilão Adam, uma versão futura de si mesmo. No entanto, ao longo da série, surge a pergunta: será que as tentativas de mudar o futuro apenas o reforçam? Seria o livre-arbítrio uma ilusão, onde todas as ações são, na verdade, já predestinadas?
A série nos faz questionar se é possível escapar do destino. Cada tentativa de mudança parece apenas manter o ciclo em movimento, criando um paradoxo onde as ações dos personagens, em vez de libertá-los, os mantêm presos.
O paradoxo de Bootstrap
O “paradoxo de Bootstrap é uma das teorias científicas mais discutidas em “Dark”. Esse paradoxo ocorre quando um objeto ou informação é passado do futuro para o passado, sem que se saiba sua origem. A expressão bootstrap vem da língua inglesa “to pull oneself up by one’s bootstrap”, que remete à ideia de uma pessoa tentando se livrar de um afogamento puxando o próprio cadarço do sapato — algo impossível.
Em “Dark”, vemos vários exemplos desse paradoxo. O próprio Jonas, que tenta impedir que o apocalipse ocorra, acaba por contribuir para os eventos que o causam. A pergunta que surge é: de onde veio a primeira ação que desencadeou tudo? Esse paradoxo é um dos principais motores narrativos da série.
O mundo alternativo
Na terceira temporada, somos introduzidos ao conceito de um “mundo alternativo”. Descobre-se que existem dois mundos paralelos — o mundo de Jonas e o mundo de Martha (Lisa Vicari / Nina Kronjäger / Barbara Nüsse), ambos interligados por um ponto central conhecido como “o nó”. A ideia de universos paralelos expande ainda mais a trama, mostrando que as escolhas e ações em um mundo podem reverberar no outro.
Esse conceito nos leva a teorias da física quântica, como o “Multiverso”, onde todas as realidades possíveis existem simultaneamente. Em “Dark”, os dois mundos estão presos em um ciclo semelhante de repetição, onde os mesmos eventos se desenrolam de maneiras ligeiramente diferentes. A busca dos personagens é tentar encontrar uma forma de desfazer esse nó e, finalmente, romper o ciclo.
O impacto filosófico de “Dark”
Além de sua trama de viagens no tempo e universos paralelos, a produção é uma obra profundamente filosófica. Ela explora questões sobre identidade, moralidade e o peso das escolhas humanas. A série questiona se, em um mundo onde o tempo é um ciclo sem fim, nossas ações têm algum significado, ou se estamos condenados a reviver os mesmos erros eternamente.
O mesmo argumento pode ser encontrado no filme “A Viagem – tudo está conectado” (“Cloud Atlas”), das irmãs Lily e Lana Wachowski (Matrix e V de Vingança) e do alemão Tom Tykwer (Corra, Lola, Corra), baseado no livro homônimo de David Mitchell. Ambas as obras abordam a repetição dos erros humanos ao longo do tempo, questionando o significado de nossas ações e decisões.
“- O que você está lendo?
– Cartas antigas.
– Por que você não para de lê-las?
– Não sei! Estou apenas tentando entender por que continuamos a cometer os mesmos erros.”
Assim como o personagem reflete ao reler cartas antigas, “Dark” e “A Viagem” fazem seus personagens e o público questionarem: será que estamos fadados a repetir os mesmos erros, ou existe uma saída nesse ciclo eterno?
Trilha sonora
É interessante que a trilha sonora também se conecta com a história. Por exemplo, o tema de abertura, “Goodbye” do alemão Apparat, reflete o clima sombrio e enigmático. A letra e a melodia sugerem uma despedida, algo que ressoa com os personagens que estão sempre presos em ciclos de perda e repetição. Essa ligação entre música e narrativa é reforçada por outras faixas ao longo da série, cada uma escolhida a dedo para intensificar a sensação de mistério e predestinação. A trilha sonora cria uma atmosfera que amplifica a sensação de que os personagens estão presos em um ciclo, incapazes de escapar de seu destino, assim como a música se repete com variações, mas nunca realmente muda.
“Dark” é uma história sobre a luta contra o inevitável e a busca pela verdade em um mundo onde tudo parece predestinado. É uma reflexão sobre o que significa ser humano em face de forças que estão além do nosso controle — como o tempo, o destino e o próprio universo. Trata-se de um quebra-cabeça filosófico, uma obra-prima que desafia nossa compreensão de causa e efeito, livre-arbítrio e a natureza do tempo.
Ouça a música de abertura com tradução:
João Paulo Silva – @oviajantedasestrelas