*Marcela Marins Sacramento de Castro
A inteligência artificial deixou de ser promessa tecnológica para se tornar parte do cotidiano jurídico. Tribunais, escritórios e órgãos reguladores em todo o mundo já utilizam sistemas que analisam contratos, identificam riscos e até sugerem decisões. Segundo o Observatório de Inovação no Judiciário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui mais de cem projetos de IA em operação nos tribunais. Essa transformação é inegável. A questão é: estamos preparados para que decisões que afetam vidas e negócios sejam influenciadas por algoritmos que poucos compreendem?
Como advogada, vejo com preocupação o avanço de sistemas que operam dentro do que se convencionou chamar de “caixa-preta algorítmica”, modelos que não revelam como chegam a determinados resultados. Quando uma ferramenta tecnológica indica a probabilidade de reincidência criminal, define pontuações de crédito ou sugere penas com base em padrões estatísticos, a fronteira entre eficiência e injustiça se torna tênue. Sem transparência, não há como garantir que o direito à ampla defesa, ao contraditório e à imparcialidade esteja preservado.

O debate sobre regulação da IA já é uma realidade em diversos países. A União Europeia caminha para implementar o AI Act, uma das legislações mais abrangentes do mundo sobre o tema. O texto classifica sistemas conforme o grau de risco e impõe restrições severas a aplicações consideradas perigosas, como vigilância biométrica em tempo real. Organismos internacionais como a OCDE e a UNESCO também têm atuado para estabelecer princípios globais que defendam a responsabilidade, a transparência e a não discriminação. São esforços que mostram que a inteligência artificial precisa de limites claros, especialmente quando impacta direitos fundamentais.
No contexto internacional, a complexidade aumenta. É cada vez mais comum lidar com empresas que têm sede em um país, servidores em outro e usuários em um terceiro. Como garantir os mesmos padrões de proteção de dados e de responsabilidade civil diante de legislações tão distintas? Essa é uma das razões pelas quais acredito que o Direito Internacional terá papel central na construção de normas transnacionais sobre o uso ético da tecnologia. Sem cooperação entre as nações, cria-se um vácuo jurídico que pode permitir abusos e enfraquecer garantias.
Não há dúvidas de que a IA pode tornar o sistema de justiça mais ágil e acessível. Automatizar tarefas repetitivas, cruzar jurisprudências e prever cenários processuais são avanços valiosos. Mas a pressa não pode substituir a prudência. Julgar continua sendo um ato profundamente humano, que exige ponderação, sensibilidade e empatia. Nenhum algoritmo é capaz de reproduzir essas dimensões. A tecnologia deve ser uma aliada do julgador, não sua substituta.

O profissional do Direito, diante desse novo cenário, precisa ampliar seu repertório. Não basta conhecer leis e doutrinas. É necessário compreender o funcionamento das ferramentas tecnológicas que já fazem parte da rotina jurídica. Essa compreensão técnica é o que permitirá o uso responsável da IA, preservando o equilíbrio entre eficiência e justiça.
Acredito que o futuro do Direito não está em resistir à tecnologia, mas em humanizá-la. A inteligência artificial deve servir ao propósito de garantir direitos, e não o contrário. Regular o invisível, que são os códigos, as probabilidades e os algoritmos, é o grande desafio da nossa geração jurídica. E só conseguiremos enfrentá-lo se mantivermos o humano no centro de todas as decisões.
Sobre Marcela Marins Sacramento de Castro
Marcela Marins Sacramento de Castro é advogada com mais de 15 anos de experiência, especializada em Direito Internacional pela PUC Minas. Membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da American Bar Association (ABA) e da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), atua em consultoria e mediação internacional, com foco em relações jurídicas entre empresas e instituições de diferentes países.
É coautora da obra Internazionale Juris Academy e do livro Direito Internacional Contemporâneo e Temas Controversos, ambos voltados ao estudo de tratados, migração e cooperação jurídica internacional. Integra desde 2022 a Comunidade Internazionale de Direito Internacional, grupo que reúne profissionais de 12 países e é referência em estudos e debates sobre Direito Internacional Público e Privado.
Reconhecida pela contribuição à advocacia internacional, foi homenageada com o Prêmio Quality Justice 2025 e o Top Quality Brazil 2024, distinções concedidas a profissionais de destaque pela qualidade e credibilidade de sua atuação.
