Parece que foi preciso expurgarem Zack Snyder para fora de projetos com grandes estúdios e a Netflix lhe vir com a chance e oportunidade de trabalhar com o que raio ele quisesse para que o diretor voltasse às suas raízes primais que haviam iniciado sua carreira como diretor de cinema lá em 2004 quando ele realizou o ousado remake de “O Despertar dos Mortos” – clássico magistral de George Romero tanto do cinema, do gênero terror em si e considerado como o maior filme de zumbi de todos os tempos. E cuja polêmica revisão de Snyder em Madrugada dos Mortos (2004) milagrosamente conseguiu atrair fãs admiradores que ainda o consideram como o melhor filme do diretor, já que foi o único onde seus vícios estilísticos ainda eram dosados e serviram para criar uma experiência que mesclava ação e terror de forma quase que primorosa (mesmo que nada em nível comparável à obra-prima de Romero).
Agora ele retornar ao gênero de Zumbis parecia mesmo um retorno à forma, ele retomar uma simplicidade que talvez lhe faltasse desde então onde só vinha apostando em filmes ambiciosos, um atrás do outro, porém, Army of the Dead: Invasão em Las Vegas, não deixa de ser diferente quanto a isso, mesmo que traga sim uma espécie de novo frescor sobre o que o diretor ainda é capaz de realizar com sua mente insana e de intenções bem mais puras do que se pode imaginar. Já começando com um pontapé inicial que promete se fincar na sua memória com a montagem introdutória ao som de Viva Las Vegas na versão de Richard Cheese e Alison Crowe, cuja sequência de cenas mostrando Las Vegas entrando em colapso de guerra e caos poderia ser todo um filme inteiro (e eu quero assistir esse filme!).
O Mesmo de sempre, renovado!
E já servindo para mostrar um Zack Snyder completamente livre de quaisquer correntes restritivas e fazendo o que ele faz de melhor: cenas de introdução insanamente memoráveis; seguidas por um filme com ação idiota e sem sentido; mulheres gostosonas duronas carregando metralhadoras; um enredo tão simples, mas pretensioso o suficiente para ir além do aparente convenções para refletir algo mais profundo entre os elementos do gênero de filmes de zumbi já tão sobrecarregado e que cheira à clichê por toda a parte, mas completamente ciente disso.
Assim como também é uma completa bagunça estilística tão cheia de si, uma mistureba de filme de ação estilo anos 80, dentro de uma escala de blockbuster convencional, terror e sanguinolência de um filme zumbi, além de ter um elenco bastante carismático de atores etnicamente diversificados interpretando renegados moralmente instáveis, mas extremamente gostáveis como nossos heróis, e de alguma forma ainda encaixando uma história sentimental de reconciliação entre pai e filha no meio de tudo, e ambientando tudo em uma Las Vegas pós-apocalíptica com duas horas e 28 minutos de duração embalada em uma estrutura que segue a dinâmica de um videogame com crescente ameaça. Basicamente, tem algo para quase todo mundo tirar o mínimo de prazer disso!
Em frente disso, temos o personagem de Scott Ward (Dave Bautista), nosso herói protagonista que, depois de ser contratado pelo misterioso empresário Bly Tanaka (Hiroyuki Sanada), deixa sua vida assando hambúrgueres ruins, e pegou em armas novamente e recebe a missão de reunir uma equipe para entrar na cidade de Vegas, lutar contra hordas de zumbis, abrir um cofre inquebrável para pegar $200 milhões em dinheiro e escapar voando de helicóptero antes que uma bomba nuclear seja lançada na cidade para destruir o infecção de zumbi. Fazendo de Army of the Dead parecer um ménage matrimonial entre Fuga de Nova York de John Carpenter com Aliens de James Cameron e um filme de assalto – o famoso heist movie.
Soa ao menos intrigante não é?! Não que isso seja algo particularmente original dentro do gênero, ainda mais dado a continuação do grande sucesso coreano Invasão Zumbi – Invasão Zumbi 2: Península – , que basicamente tem um enredo muito semelhante ao filme de Snyder, exceto pelas hordas de zumbis formadas hierarquicamente com líderes Alfa, e o filme de Snyder ter personagens com legítimas camadas dramáticas no meio de tudo.
Uma Nova Espécie de Zumbi
Marcando seu retorno ao gênero zumbi após 18 anos de lacuna e muitas dores de cabeça com franquias e personagens da DC, pode-se ver aqui a imensa diferença entre o diretor de Madrugada dos Mortos e agora o de Army of the Dead, e mostrando como Zack Snyder tem ideias para praticamente qualquer coisa ele coloca suas próprias mãos – sendo que o mesmo já havia essa história em mente guardada desde 2004 como uma expansão de Madrugada dos Mortos, mas que finalmente conseguiu a realizar aqui como sendo independente e de identidade própria.
Partindo aqui para fazer de seus zumbis muito próprios e diferente de tudo que podemos saber antecipadamente do gênero, mesmo que ainda pegue pedaços e elementos de outros títulos e marcas da cultura popular zumbi, discutivelmente superiores. Desde os anos áureos dos filmes Romero e suas alegorias políticas ambientadas no Armagedom da sociedade; aos Zumbis corredores do século 21 de filmes como 28 Dias Depois e o próprio Madrugada dos Mortos, mais o escopo de blockbuster épico de um filme como Guerra Mundial Z.
Leva alguns minutos despejando diálogos expositivos assim que eles entram na cidade, dissertando sobre como os zumbis chegaram ao poder e como eles operam, mas nunca se desperdiça focando demasiado cima disso, pois os próprios zumbis continuam enigmaticamente intrigantes ao longo do filme. Nunca especificando uma origem certa para eles, apesar de algumas pistas interessantes espalhadas pelo filme, incluindo uma menção direta da Área 51 (e até mesmo a breve aparição de OVNIs?!), e até tendo… zumbis robôs?! Isso não é tanto um elemento estranho, como é na verdade pertubador!
Fazendo questão de estabelecer toda uma mitologia por detrás da natureza da existência desses zumbis! Estabelecendo regras de como eles agem e operam que realmente nunca foram exploradas antes em qualquer filme. Você tem aqui seus zumbis habituais os trôpegos sem cérebro cambaleando sem rumo, movidos por pura fome de carne humana, e também tem os zumbis corredores parecendo atleas de parkour, e acima deles temos os zumbis “Alfa”, que mais se parecem como os vampiros do filme Eu Sou a Lenda. Uma nova forma de espécie primitiva, mas intelectualmente evoluída prestes a nascer e espalhar sua semente pelo mundo, fortes, rápidos resistentes e com consciência ao ponto de se criar hierarquias de poder entre suas fileiras.
Criando relações de matrimônio e poder, comportando-se como animais mortos-vivos e exigindo sacrifícios humanos para permitir que invasores caminhem entre suas terras. É tão estúpido quanto é imensamente legal! E estabelecendo uma clara hierarquia de poder entre eles que aspira tanto um ar de mito e culto religioso macabro marcado por violência instintiva, onde até uma piscina vazia da cobertura de um hotel para eles serve como um lugar de batismo para cada novo zumbi alfa que nasce entre eles
E o líder, nomeado pelo diretor carinhosamente como Zeus (Richard Cetrone), reina sobre esse hotel chamado OLYMPUS, cercado por seus seguidores – e ironicamente, sendo o personagem mais interessante e complexo de todo o filme, mostrando propósito em suas ações e até mesmo emoções (?!), sim, este é o filme onde você verá um Zumbi chorando e talvez até mesmo acabar se sentindo mal por ele, mas também completamente temê-lo pelo seu ar e instinto intimidador.
Agindo como um deus entre os mortos-vivos – ele é rápido, forte, inteligente o suficiente para saber que sua única fraqueza como um zumbi é sua cabeça, então ele usa um capacete que parece uma mistura de elmo de Viking e a máscara do Fantasma da Ópera – e se tornando essa máquina monstruosa basicamente indestrutível, que evoca seus exércitos para ir para a guerra como se fosse um líder bárbaro da era medieval. E busca espalhar sua semente e nutrir sua própria linhagem com um herdeiro e sua amada rainha – e pelo visto a ideia do bebe zumbi que já havia marcado presença em Madrugada dos Mortos veio da própria mente do Snyder.
E acaba tornado o lado zumbi da trama e do mundo aqui intrigantemente representando um mundo autogovernado e auto-sustentável tentando crescer e se expandindo como seu próprio reino feudal em um cenário apocalíptico da raça humana que já não mais se sustenta ali. Tomando tanto ares de ficção cientifica assim como de fantasia fundidos em um. Enquanto que o enredo do filme dos humanos entrando na cidade e invadindo território dos zumbis pode quase ser visto como um bando de colonos vasculhando e interferindo onde não deveriam, e é o que acaba sendo a tragédia final da civilização zumbi… ou como a cena final indica… o nascimento da mesma…?! O filme leva tudo isso tão a sério e com tanta paixão que se torna inspirador de continuar assistindo para ver até onde toda essa loucura vai.
Política de um Mundo Acabado
Criando ainda esse cenário de um futuro dividido no cenário pós-apocalíptico de Las Vegas e o mundo exterior que aparenta normal, mas com uma sensação de decadência percorrendo no ar e entre as pessoas. Vivendo em animosidade, perturbados, buscando algo para agarrar como um porto seguro para escapar do deserto sem lei que os cerca. Governados por forças misteriosas sem rosto olhando apenas para suas agendas pessoais, não importa o custo que possa ter para os outros. Tudo o que não está tão longe da nossa realidade. E em meio a isso Snyder até emprega certos comentários políticos embutidos ali no meio através dos noticiários televisivos que constantemente aparecem em cena – similarmente como ele fez em Batman VS Superman.
Se de um lado faz piada com as ONGs que defendem que matar zumbi é violação de direitos humanos, do outro cria alegorias interessantes como quando mostra os arredores de Vegas formados por campos de quarentena – onde as últimas pessoas a serem evacuadas da cidade são todos formados por minorias, e que mais parece um centro de imigração de estrangeiros vivendo sobe a tutela de guardas abusivos medindo temperatura como se estivessem vivendo em plena pandemia do COVID, e sendo ameaçados de serem postos em quarentena.
Ou vide o fato do próprio grupo de protagonistas ser formado por atores e personagens etnicamente diversificados, propositalmente sinalizando uma subversão de estereótipos e mostrando uma espécie de união multi-racial e étnica formada entre eles, em busca de uma oportunidade no assalto para conseguirem levar uma vida melhor na realidade vazia e opressora em que habitam. Nada no nível do que um Romero faria, é claro, mas Snyder faz o seu feijão com arroz alegórico até que muito bem.
Gosto especialmente de como ele é realmente voraz em querer subverter as regras do gênero que ele escolhe aqui, ao mesmo tempo em que respeita suas tradições. Assim como Madrugada dos Mortos, o filme é mais um thriller de ação do que propriamente de terror, mas mesmo nessa frente, não segue as regras esperadas. Isso é meio que retratado logo em uma montagem ainda no inicio do filme quando eles repassam seu plano de invadir o cassino e abrir o cofre, e mostrando o grupo em uma matança de zumbis como se eles fossem parte de um painel de quadrinhos do Snyder em gloriosa câmera lenta, todo mundo suado remexendo os cabelos e atirando sem parar em hordas de zumbis em um quadro épico – servindo quase que como a personificação de nossas próprias expectativas em relação a um filme de zumbi grande e idiota como este foi vendido como sendo.
Para, então, lançar mais tarde os mesmos personagens nos mesmos cenários, mas sem um pingo do mesmo nível de glória heróica resplandecente de outrora. Já no segundo encontro com uma horda de zumbis se torna uma sequência arrepiante de suspense e terror que parece tirada de uma missão de Resident Evil, com um dos membros da equipe morrendo brutalmente e, a partir daí, a equipe só anda no sapatinho, tomando todos os cuidados para não serem pegos e cumprirem o que é uma missão de roubo bem típica para quem já viu milhares de heist-movies.
É como se Onze Homens e um Segredo tivesse passado por um tratamento de revista em quadrinhos misturado com Os Doze Condenados, com uma pitada de Esquadrão Suicida, e totalmente revestidos nos vícios pirotécnicos de Snyder de fazer heróis durões, e você acaba se importando com todos, alguns mais outros menos. Apenas como um exemplo: a personagem de Samantha Win mal dura metade do filme, mas consegue ter uma cena inteira exclusiva para ela brilhar, aliás toda a equipe tem.
O Esquadrão Suicida
Seja Raúl Castillo como Guzman é um falastrão que interpreta uma espécie de YouTuber do apocalipse, que vai missão tanto pelo lucro como também criando conteúdo ao longo do caminho; Ana de la Reguera como Maria é uma espécie do coração sarcástico do grupo, e mostra alguns traços interessantes de relação com a personagem de Ward, mas que nunca são totalmente explorados; e até mesmo o braço direito de Tanaka, Martin (Garret Dillahunt) tem seus momentos, tanto servindo como um alívio cômico, como também o grande babaca do grupo que obviamente tem sua própria agenda durante a missão.
Alguns dos maiores destaques ficam com Nora Arnezeder como Lilly (também conhecida como Coyote), a rastreadora durona e sobrevivente emocionalmente danificada que busca algum tipo de valor moral no que ela faz e em sua natureza quebrada; Tig Notaro como Peters, a pilota machona que parece tirada direto de um filme de ação dos anos 80. Mas especialmente com a dupla formada por Matthias Schweighöfer e Omari Hardwick, interpretando Dieter e Vanderohe. Um o abridor de cofre alemão que não sabe nada sobre como sobreviver ao apocalipse zumbi e tem que aprender ao longo do caminho, sendo o óbvio alívio cômico do filme, mas que acaba funcionando com seus tiques e personalidade tão fora de tom do resto do filme.
E o outro, um filósofo sádico procurando uma maneira de expurgar os demônios que ainda possam talvez o rondar, e que do nada divaga sobre realidades alternativas e como o destino está lhes pregando uma peça cruel onde eles são os meros fantoches de uma missão suicida – ou é realmente que o filme está falando com convicção (Snyder só fica metendo mais idéia no liquidificador pra te embaralhar), e sem ter um pingo de paciência alguma para a inexperiência do alemão pirralho. Mas que acabam estabelecendo entre eles uma relação de mentor e também amizade conforme o filme avança, compartilhando uma química realmente forte e afiada, trazendo algumas das maiores risadas, assim como também os golpes emocionais mais pesados de todo o filme em suas cenas.
Mas o outro peso pesado aqui é, claro, Bautista no centro de tido. Não só mostrando o quão bom ator ele é, como também trazendo algo de especial para sua atuação aqui que deve ter fascinado os olhos de Snyder ao capturar. Com seu corpo envelhecido e estatura física digna de um Titã, ele é a essência da obsessão de Snyder pelo físico estético do herói grego, formado aqui em um corpo humano real e uma personalidade complexa em camadas. Como Hércules, ele é o gigante musculoso – assombrado por uma tragédia familiar do passado sombrio. E na mesma medida ele joga mesas de cassino em zumbis como se eles estivessem jogando pedras, metralhando hordas com alguns tiros, e quando ele se torna uma máquina de matança contra um grupo de zumbis é emocionalmente catártico de assistir! Definitivamente o ator dos sonhos para um filme do Snyder.
A ação aqui também consegue se mostrar como fantástica, divida entre o começo, o meio do filme e a meia hora final de clímax pura e brutal. Deixando o resto da duração do filme fluir em uma velocidade completamente focada em personagens, mas quando a ação invade, é gloriosamente sangrenta em todas as formas carnificina que você pode imaginar para um filme de zumbi, desde cabeças explodindo, entranhas se espalhando e o ataque de animal mais tenso desde a cena do urso em O Regresso, o tigre zumbi não desaponta! Com excelentes efeitos práticos, trabalhando em conjunto com CGI sem descontinuidades visuais e sem escorregar, esta é uma produção de alto nível e prova o porquê!
A trilha sonora também é um manjar. Tendo o melhor uso da sinfonia “Götterdämmerung, Act III: Siegfrieds Trauermarsch” de Richard Wagner desde Excalibur. E talvez o uso e a versão mais melancólica da música “The Cranberries – Zombie”!
Mitologia e Zumbis
Mas, em meio a toda diversão, também há um coração pulsante, e um pouco de cérebro não apenas para ser comido ou alvejado, porque de alguma forma, Snyder, o insano, encontrou uma maneira de inserir mitologia em um filme de zumbi. Isso vai além do mero traço de zumbis construídos hierarquicamente como seu próprio reino, mas como a jornada dos personagens aqui quase que se forma em volta de um peso épico quase lírico.
(alguns spoilers à frente)
Desde o cofre que eles devem abrir sendo apelidado de “Götterdämmerung”, que se traduz como “Crepúsculo dos Deuses”, também conhecido como o “RAGNARÖK”, que na mitologia Nórdica representa a morte dos antigos deuses pelo retorno de Baldur – o diabo, do inferno – e (ou) a renovação terra.
Ou apenas veja como o clímax do filme começa e termina: Zeus, o zumbi Alfa, desce do Olimpus (o Hotel), a primeira pessoa com quem ele luta é Vanderohe – personagem que tem um símbolo Ômega tatuado no peito – Ômega é a última letra do alfabeto grego, Alfa é a primeira. Ele perde, quase morre, fica preso no cofre – é salvo por Dieter (um anjo?!), e mesmo depois que a bomba nuclear atinge Las Vegas, ele sobrevive por estar dentro do cofre. Portanto, o que vemos se desenrolar no filme é uma espécie de renascimento de Hades (Vanderohe) para se tornar o novo Zeus após sua morte, ascendendo do Tártaro, do submundo – a Las Vegas nuclear. O Alfa e o Ômega – o começo e o fim dos céus e da fé, tudo em um. Sua cabeça já tá começando a coçar?!
Você também pode até dizer que o grupo protagonista é uma espécie de releitura de Jasão e dos Argonautas – os heróis que são enviados em uma missão suicida por um rei tirano, apenas para provar seu valor heróico e status mítico por meio de seus atos. Assim como também cumpre uma visão bem típica da “Jornada do Herói” de Joseph Campbell, que é até citada de forma nada sutil dentro do filme, e que é refletida entre os objetivos individuais do grupo.
“É descendo ao abismo onde recuperamos os tesouros da vida. Onde você tropeça, aí está o seu tesouro.”
E como em todo filme do Snyder ele mostra o quão piamente ele acredita como a destruição é sempre o caminho para a reconciliação: o exército de 300 homens parrudos tendo que morrer para inspirar a nação inteira se unir contra os invasores; uma cidade ser dizimada e milhares morrerem para duas nações rivais, EUA e Rússia, esquecerem suas animosidades e se unirem em um objetivo em comum em Watchmen; O Superman ter morrer para que a Liga da Justiça seja formada em sua trilogia na DC.
Aqui, os heróis, assim como Campbell descreve, devem viajar rumo ao abismo para descobrir novas coisas sobre eles mesmos ou encontrar os tesouros – uma redenção do passado, valor em seus atos, um senso de importância em sua própria existência individual. Com Las Vegas assumindo aqui o significado literal de seu famoso apelido – a “Cidade dos Pecados”, o centro do culto dos prazeres carnais e monetários, agora se tornando o próprio purgatório. O lugar onde julga os erros e acertos das pessoas em suas vidas conturbadas, e decide para onde eles devem ir. Onde os personagens devem literalmente lutar contra seus próprios pecados, para se libertar do passado que ainda os atormenta.
Apenas exaltando ainda mais o fato do quanto o foco do filme se divide tanto no estabelecer os zumbi quanto sua mitologia por trás deles, e também se baseando fortemente em seus personagens. Pois depois da cena intro ridiculamente insana, toda a primeira hora do filme gira em torno de apenas estabelecer cada uma das personalidades e objetivos dos protagonistas, onde você só volta a ver um zumbi novamente depois de uma hora duração, mas sem nunca se arrastar nem perder a peteca de seu interesse.
Indo direto ao fio da meada de cada personagem que introduz, sem se arrastar e até te deixa curioso em saber mais sobre cada um, pois, mesmo em duas horas e meia de filme, o que vemos dos personagens parece tão pouco, mas o suficiente para gostarmos de todos. Cada um com seu passado nebuloso que mal é mostrado, mas que influencia diretamente com a história e cada personagem, e que talvez vá ser explorado nas futuras prequelas que a Netflix já anunciou que haverá.
É uma diversão absurdista, mas que nunca perde a mão do seu núcleo emocional. É completamente autoconsciente como filme de zumbi recheado de clichês, mas que nunca pisca pra câmera constantemente se achando espertinho demais, já que se garante como algo à mais sem esforços chamativos ou ridículos graças à mão do seu diretor, completamente inspirado por detrás da câmera (dessa vez, literalmente!).
Um Toque Autoral e Pessoal
O fato de Snyder ter filmado o próprio filme atuando como o diretor de fotografia, além de dirigir (e roteirizar) é de fato impressionante. Sim, ele faz uso total de suas patenteadas sequências de câmera lenta e uso de lentes focais, que te deixam quase colado na cara dos personagens e dos zumbis. Fazendo o filme parecer virtuoso nas grandes sequências em planos abertos, e claustrofóbico nas sequências enclausuradas. Com essa estética mais crua servindo bem para nos deixar tão colados e íntimos aos personagens que se torna impossível não se sentir imerso junto a eles, e deixar o absurdo da trama se sentir palpável e verossímil.
Seu total comprometimento por detrás disso serve para ilustrar como todo o filme parece vir de algo extremamente pessoal para Snyder, e como ele até se coloca na história através do personagem de Ward. Sua missão e objetivo, assim como ele como diretor de filmes, é buscar o lucro, o sucesso financeiro, a fama. Mas junto a isso, também algo mais pessoal: o prazer, reconhecimento, honrar suas crenças, transmitir suas idéias. E buscar contar no meio disso, uma história de reconciliação e vínculo entre um pai e sua filha, é mais ou menos a maneira que Snyder usa para lidar com o luto de perder um membro da sua família ao explora o distanciamento complexo de sentimentos entre pais e filhos.
Em meio a toda a diversão e as matanças de zumbis, você tem ali uma filha e um pai, dizendo coisas pesadas um com o outro, mostrando uma lacuna de longa distância de tristeza e sentimentos de animosidade nunca resolvidos dividindo os dois. Enquanto Kate (Ella Purnell) a filha trata o pai com frieza e só embarca na missão junto com o grupo para salvar sua amiga que ficou presa na cidade, Ward deixa de querer que ela o acompanhe pela sua própria segurança – e por ele próprio não querendo lidar com a complexidade de seu relacionamento naquele momento, mas lentamente se abrindo e tentando se aproximar cada vez mais perto de sua filha novamente.
Onde você pode sentir Snyder refletindo sobre isso. Para quem já conhece todo o drama sobre sua falecida filha Autumn que morreu por suicídio durante as filmagens de Liga da Justiça, e como Snyder buscou naquele tempo lidar com sua perda através de um trabalho que acabada errado: Ward segue em uma missão suicida sem retorno – Snyder não consegue realizar sua Liga da Justiça. A missão tem um significado pessoal para cada um dos membros do esquadrão, e a de Ward é a tentativa clichê de se reconectar com sua filha – que a personagem de Maria até reconhece como algo insano e dito como impossível, mas no final… profundamente sincero.
O verdadeiro momento ápice do filme é quando, depois que o filme entra em um terceiro ato completamente sombrio e emocionalmente brutal, que não para até os segundos finais, com o golpe dando errado e Ward (assim como Zack) é forçado a escolher entre as literais “riquezas e glória” – ou salvar sua filha. Então, no final das contas, o diretor, por meio de seu personagem, busca fazer as emendas que não pode fazer em vida, agora apenas sonha – sacrificar tudo, incluindo ele mesmo, para proteger, amar e honrar sua filha, mostrando como ele trocaria tudo por ela. A cena final é muito Snyder querendo dar vida a sua Autumn de novo. É ele querendo morrer, para que sua filha possa viver um futuro que ele não poderia dar a ela, apesar das terríveis probabilidade que os cercam nesse mundo atual em colapso, ela merece ter um futuro.
Então aparentemente, lançar uma versão de 4 horas de duração de um blockbuster de super-heróis que ninguém jamais imaginou ser possível que existisse, não foi a única coisa insana que Zack Snyder fez esse ano, pois agora ele fez um filme de zumbi ser completamente autobiográfico! E não sendo de uma insanidade criativa o suficiente, Army of the Dead é definitivamente uma bagunça de diferentes pretensões fundidas em uma. O filme parece um terceiro filme de trilogia que nunca tivemos; uma adaptação de jogo derivado de algo como Left 4 Dead; um filme do John Carpenter que ele nunca dirigiu – não só pela semelhança da trama com os filmes Fuga como também pelo cinismo presente na cena final que seria tão típico do diretor em seus clássicos.
E que acaba estabelecendo sei lá quantas continuações, prequelas e produções que eles querem produzir a partir desse titulo. E com isso, conseguir fazer um filme de zumbi bem sucedido de terror, ação e uma pitada de drama épico, e que, em uma época em que a maioria dos fãs de gênero sente que já viu de tudo, ainda faz algo que pareça único, interessante, às vezes emocionante e meio original!
Raphael Klopper – estudante de jornalismo